O dia depois de ontem
Embora não parecesse, 82 permanecera presente.
A manhã se fizera ausência entre
passos disparados em todas as direções. Estávamos há decênios de distância e a
sensação percorria-nos a alma desde o baixio ao firmamento. Estivera separado das recordações por
milênios, e agora – diante de ti – tudo ressurge como sucesso incauto e
irremediável.
Como dissera: as ruas andavam
apressadas; sugeriam-se fastio e relevância. As horas tolhidas nos
acontecimentos perdiam-se em torvelinho e tormentas que – a custo – rompiam
ponteiros e estagnações. Portanto, depois de tudo, acordei pelos quartos e
algumas aflições; suores noturnos e nublidades.
– Ontem fora assim... te ouvi a
dizer entre dentes. Entanto, por suposto, puro desejo, retomei atenção ao vazio
da janela. E parti. E tu falavas e sumias e se deslocavas contrariada; e
voltavas. Respiravas e levavas – penso – os dedos entre os cabelos: aquelas
velhas cordilheiras. Eu – aos montes – longe; mais perto do esquecimento.
Deitei-me cedo; logo após meia xícara
de leite fresco. Havia calor, ao passo de deixar a janela aberta aos barulhos
de fora. Depois, a intemperança. Sim, houve um dia – no passado – a motivar o
retorno de tudo, e o fastio de ontem. E hoje. Não dei por fé o momento exato em
que desprendi da realidade – olhos baços – e tu falavas e desoladamente andavas
e sumias, desaparecias aos olhos e, por pouco, voltavas a ocupar espaço e
audições. Então, acordei entre 10 e a sensação era a de que – ao longe, talvez
onde os ossos desalcançassem – falavas e andavas sem-fim; e, cabelos ao vento,
desaparecias, e algum balbucio de ao-longe indo-vindo o imperceptível, e
tornavas a desaparecer – meus
pensamentos –; redivivas audições. Eu, no vagar inglório. Olhos pela paisagem e
aquela dor de por-dentro como a recorrer ao insucesso.
O sol insistisse em arder. Sentei-me
dele à sombra, distante da investida que preenchia de amanhecimento onde nos
encontrávamos.
A cada avanço na paisagem, a
recordação cede lugar à lembrança e – pelo-mais-pelo-menos – intensifica a
sensação de já ter presenciado aquilo todo em quantidade e consideração.
Súbito, olho divisou – à meia distância – grupo de jovens que, sugeria,
aprumavam instrumentos e tonalidades musicais. Estavam ali – à frente –; e não
estavam. Depois do sucedido ainda lá, insistindo contentamento.
Ontem, não pude divisar pela
certeza. Hoje, sim: Monteverdi. Uma duas
três e sempre iniciavam do mesmo ponto. Os passeantes – corridos – pouco lhes
mediam presença. Agora, o que restara de então, apenas a presente ausência de
notas que insistissem em permanecer n’alma de meus olhos, interpermeados pela
vidraça inda fechada; donde a lembrança e a confirmação: sim, Monteverdi,
certamente. E eles – no exato – 4 no passeio de tantos a recomeçarem sempre do
mesmo ponto. Sempre. Do mesmo ponto. Não mais que meia pequena dúzia de acordes
à espera. À espera-de. Seria? Apenas, pacientemente, reiniciavam. Pacientes,
re-iniciavam. Apenas passavam sem lhes conferir sentido ou atenção. Meus pensamentos
somavam-se aos acordes e, repetidamente, sempre do mesmo ponto, realizavam um
dois três poucos balbucios – Paolo – que assim o fosse. Meus pensamentos somavam-se aos acordes e,
repetidamente, sempre do mesmo ponto, realizavam mesmos trajetos e indignações:
sorrisos, campos e ventos, algazarras, bandeirolas, piparotes, Magníficat e francas esperanças; inda
mais: certeza e antecipadas convicções. Depois: Verdi, perturbações,
desmantelos, Otelo, descrença,
desconjuro e ruína.
Pela vidraça – no translúcido – o
curso dos dias, inescrupulosamente. Aliso com o resto de unhas e dedos a
vestimenta que, por ainda mais, lhe nubla a visão, e componho cordilheiras no
pó, ansiosamente, pelos anos depositado. Ao canto, à esquerda, a cadeira vazia
que há pouco me ocuparia espaço. Súbito, olho desviado das paisagens: sim, sim;
de imagem repercutida na recordação à vivência real de tempo presente e
tempestuoso:
Bem sei a data e o local. Dezessete
e quinze em ponto. Cinco de julho de um mil novecentos e oitenta e dois.
Barcelona. Não-mais exitente Sarriá. A tarde parecia de bons agouros,
entanto – talvez – touros já desandassem
voo em direção ao desatino e à desmesura a
las cinco de la tarde. El viento se llevó los algodones...a las cinco de la
tarde...cuando el sudor de nieve fue llegando...a las cinco de la tarde...lo
demás era muerte y sólo muerte... a las cinco de la tarde...Ay, qué terribles
cinco de la tarde. Eran las cinco em todos los relojes. Eran las cinco en
sombra de la tarde. Tudo por vislumbrar e, por mais uma vez, a mesma imagem
a percorrer a veracidade do infante insucesso: uma duas três, sempre
reiniciando do mesmo ponto: Paolo Paolo Paolo. De sorriso e crença
indubitáveis, a tarde enxurrou tempestade, gotas de sangue, aflições e
desfalecimento: tudo ali, naquela tarde, ruína e frustrações prenunciadas.
Se tivesse, teria não mais que uns
tantos bons e vividos anos; à penas e catalogações. Par de livros por escrever
e, desde lá, saudade de aquilo que dali sentisse carência. Até surgires, e
pronto: tudo a desfalecer por vielas e atitudes recortadas, insalubres rotundas
e umidades, reconsiderações e desencantos.
Por mais que insistisse em soterrar
o musgo da sensação, a tormenta prosseguia involuntária de minha ansiedade de
fuga: desmoronamento. E falavas, falavas, trazendo-me à velha realidade e – de-novo – ao desejo de entorpecimento: o
que eras, era.
As visões são sempre a recorrência:
todos os anos depois dali, ao dúbio esquecimento. Entanto, às vezes – no soar
de telefones e telefonemas – certo aceno breve d’espasmo breve, e promessas e
esperanças não se contém e extravazam escandalosas pelas bordas do firmamento.
Daí o susto, o escárnio do avesso, e a crua atenção à mera possibilidade
inconclusa. Fora há muito; e fora para pior. E acabara. Vejo que de lá tudo
decaíra a pó, e impregna-me irreverente a ponta dos dedos. Fora queda para além
de mero esforço passageiro; portanto, diante de ti, o dia depois de ontem retém
a nervura circunspecta de insucesso maior: o de todas as certezas aos frangalhos.
Entanto, tudo já prenunciasse desterro e, em verdade, a perda inverossímil em
tão-poucos passageiros pulsos – não mais que hora e meia, por suposto –
estende-se a outros intercursos e humanas carências; afinal o que são
entre-noventa minutos de intermitência? Nada; nada mudaria o curso das incertas
e dos nossos mais frágeis desencontros. Que perduram, antesmente.
E digo que sim. Entre parênteses a
memória de cada instante em que a credulidade foi cedendo espaço ao incrudente
desfecho; inda não esvaido de todo: a veia negligenciada – violenta – diante
daquilo.
Portanto, mesmo, nada teria a dizer.
O nem querer-dizer. Nada insistisse em dizer e agora tu aqui, bem à nossa
frente a despetalar de mim as mais destroçadas
sensações; e nos lembrar que – por-tão-por-sem – tudo se acabara, e não.
Afinal, vivemos. E tu aqui, a cobrar-me de reviver o que já prontamente
esquecido. E despertar: tudo planejado e, à hora exata – às dezessete e quinze
daquela tarde depois da outra, ambas fatídicas
– ruas desertas, casas
recolhidas, olhos atentos e corações à altura de fôlego-à-mingua. Nesses
instantes pequenos, eternidade de silêncios: apenas expectativas e pulsações. À
cadeira − ali a frente − aproximaram-se outras e tantas mais; quase todos os
olhos irmanados diante do almejo: na tela, devidas certezas. Até o fim.
A música, então, era plena. Sem mais
experimentos: soasse a própria melodia. Entanto, o vazio prolongado – à
lentidão de meus ouvidos – entre nota e nota encompridava o silêncio
alojado-estrondoso em meus pensamentos. Deixo os olhos esquecidos na paisagem.
O que resta é nada além de esforço de vidraça – tecido carmesin e pó – em
desalinho. A custo, apáticos, me observam; diverso dos teus – provocantes – como as palavras em desacredito e fúria que despejas sobre meus insanos ouvidos. Se
sim, sim; caso não, não. Mas, no extenso, diante de ti, calo; e – dada minha
ausência – agita-se, escomungas, esconjuras o deus-o-livre e nunca mais. E o
que pensarás mesmo depois de não muito tempo passado? Talvez venhas com
promessa de postar penas e caligrafias, e algo a refazer pela palavra a
sensação da despedida de coisa muito esperada e – praticamente – concluída, que
fracassara. E então me furtarias a sorte do esquecimento e
me trarias de volta ao convívio com as flores das pequenas angústias e pestes
acumuladas. E tu ficas aí, a falar e falar diante de meus mais improváveis
deslocamentos.
Não dei-me de-conta; o tempo esvaido
na esgueira da quase-ida manhã. Bem sei o trabalho de dar ordem à normalidade
da casa: recolher, descartar, desimpedir, enxaguar, desatar, permanecer,
debitar. Afinal, a qualquer momento, vais chegar e, sem escrúpulos, perguntar-me pelo espelho,
que me dispersa em tempo e tempo. E eu, o que a dizer depois de ontem?
A história de papéis acumula-se à
escrivaninha. Caligrafia aos poucos – sofridamente. Apenas promessa de ter
corpo tecido e pronto, sem remendos e de boa temperança. Assim, uma duas três,
ensaio dizer-te o que esperas ouvir. Entanto, só faço mesmo ausência e as
palavras insoam para dentro e, por outra vez, emudecem diante de ti e de mim, a
olharem-me com os olhos meus; inquisidoramente.
No
repentino, passos dobrados. Corredores externos. Porta entre-aberta. Outros
passos. O toque melodioso na fechadura que, por pouco, agride acorde musical –
esperança sob sal – e, abrupto: o espelho. Não. Não me vê no-imediato.
Distraio-o aos flancos. Invisto pelas tordas. Escorrego entre-lenhos; mas, por
estar inda vivo – irremediável – aos poucos e receios, devolto-me da imprecisão
à contratura d’encontro, dando-me a ver na imagem de minha imagem nele
projetada. Olha-me fixamente os olhos. E eu sei. Nada mais a ser feito. Nada a
vingar pudesse.
Há horas, assim estive: entre mim e
o que restara: ontem e hoje.
O
sol incidia agora, violento, sobre o quarteto. Instrumentos os reluzia em
contraste às vestes negramente veladas. Só então – olhar interdito em ti – o
estorvo: garganta e nó, em não-mais que
meias-exaustas palavras.
Afinal,
vivos, insistimos.
IGOR
ROSSONI
Conto
pulicado na antologia “82. Uma copa, 15
histórias.” (Organização de Mayrant Gallo). Anajé: Casarão do Verbo, 2013.
155 páginas
http://www.casaraodoverbo.com.br/livros3.html
http://www.carlosribeiroescritor.com.br/novo/livros-publicados/82-uma-copa-quinze-historias/
IGOR ROSSONI é
arquiteto, escritor, ensaísta, Pós-Doutor em Teoria Literária. É professor do Instituto
de Letras da UFBA e de Pós-Graduação no Programa Multidisciplinar em Cultura e
Sociedade do IHAC-UFBA. Publicou mais de 300 artigos em imprensa escrita,
vários capítulos de livros e ensaios científicos. Livros: Pátio, 1981; Vértebra, 1983; Zen e a poética auto-reflexiva de Clarice Lispector,
2002; Os inocentes, 2006; Fotogramas do imaginário:
Manoel de Barros, 2007; Capturas do instante, 2007; Exercício para clarineta, 2010; Coletâneas: Tardes com anões, 2011; Cenas Brasileiras: ensaios
sobre literatura, 2012; Entredentes, 2012;
82 – uma copa, várias histórias, 2013; Frei Russon, 2014; Cruvianas: prosa d’encantar
carneiros, 2015; Transfiguração poética do
espaço e Guimarães Rosa e Manoel de Barros, 2016. Membro efetivo da Academia de Letras de Santo Amaro - BA.
http://oxe.insix.com.br/igor-rossoni/
http://blogdaalsa.blogspot.com/