quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

SANTO SOUZA: POETA SERGIPANO



BALISA

 

Cravar a estrela no chão

e dizer à noite: agora,

afaste-se a escuridão

que eu vou chegando com a aurora.

 

E fazer brotar da terra

- da terra que tudo faz –

não a treva e o ódio da guerra,

mas a luz e o amor da paz.

 

Que eu vim traçar nos caminhos

(invés de dor e agonia)

a rota livre dos homens

com as tintas claras do dia.

 


SANTO SOUZA (1919-2014) nasceu e viveu em Sergipe. Seu primeiro livro de poesias publicado foi CIDADE SUBTERRÂNEA (1953), seguiram-se CADERNO DE ELEGIAS (1954), RELÍQUIAS (1955) e ODE ÓRFICA (1956), cuja primeira edição, foi publicada, como os livros anteriores, por José Augusto Garcez em seu Movimento Cultural de Sergipe. Continuando sua trajetória de poeta, publica PÁSSARO DE PEDRA E SONO (1964), CONCERTO E ARQUITETURA (1974), PENTÁCULO DO MEDO (1980), A ODE E O MEDO (reedição da ODE e do PENTÁCULO com um canto introdutório em 1988), ÂNCORAS DE ARGO (1994), A CONSTRUÇÃO DO ESPANTO (1998). O crítico de literatura Jackson da Silva Lima encontra afinidades do poeta com outros da categoria de Valéry, Rilke, Fernando Pessoa e Eliot, mergulhando fundo na simbologia, esoterismo e complexidade de PENTÁCULO DO MEDO. O poeta foi agraciado com o Grande Prêmio de Crítica 1995, concedido pela associação de Críticos de Arte de São Paulo. Membro da Academia Sergipana de Letras.

 

http://www.jornaldepoesia.jor.br/santosouza.html#nota

https://infonet.com.br/blogs/deus-ensanguentado-o-novo-livro-de-santo-souza/

http://literaturasergipana.blogspot.com/2015/04/santo-souza-vida-e-obra.html

http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/sergipe/santos_souza.html

 

 

 

 

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

JOÃO CABRAL DE MELO NETO: Poesia completa



Esta edição comemora os cem anos do escritor, poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto, ícone da poesia brasileira.

Um dos maiores poetas de língua portuguesa do século XX, João Cabral de Melo Neto ficou conhecido pelo estilo conciso, rigor formal e apurada crítica social ― numa comparação feita por ele mesmo, o poeta seria como um escultor, que incessantemente corta a pedra até que a escultura surja de dentro dela.

Sua produção foi reunida nesta Poesia completa, que traz seus primeiros poemas e depois seu primeiro livro, Pedra do sono, lançado no início dos anos 1940, passando por textos que já se tornaram clássicos da nossa literatura como O cão sem plumas, Morte e vida Severina, A educação pela pedra, Museu de tudo, Auto do frade, até Sevilha andando, seu derradeiro livro.
O autor faleceu em 1999, deixando uma obra de força descomunal. Para comemorar seu centenário, esta Poesia completa traz ainda textos póstumos, dispersos e inéditos, organizados por Antonio Carlos Secchin com a colaboração de Edneia Ribeiro.

“Mudou profundamente não só a poesia, mas a cultura brasileira.” ― João Alexandre Barbosa

“Na sua geração, não tem quem o iguale, mesmo em dimensão universal.” ― Augusto de Campos

“Cortava a poesia com a faca só lâmina de sua extraordinária força vocabular, criando impactos ao mesmo tempo plásticos e fundamentais. Nunca usava o enfeite como complemento da essência, tudo nele era inaugural, primeiro, único.” ― Carlos Heitor Cony

“Ela [a poesia de João Cabral] trata as palavras como se fossem coisas e organiza essas coisas de tal maneira como se fossem conceitos.” ― Antonio Candido

 

Antonio Carlos Secchin


Antonio Carlos Secchin nasceu no Rio de Janeiro em 10 de junho de 1952. Filho de Sives Secchin e de Victoria Regia Fuzeira Secchin. Até os seis anos morou em Cachoeiro de Itapemirim. Desde 1959 reside no  Rio de Janeiro. É Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1982). Professor de Literatura Brasileira das Universidades de Bordeaux, (1975-1979), Roma (1985), Rennes (1991), Mérida (1999) Paris III-Sorbonne Nouvelle (2009) e da Faculdade de Letras da UFRJ, onde foi aprovado (1993), por unanimidade, com nota máxima, em concurso público para professor titular. Na carreira docente, foi diversas vezes eleito paraninfo e  patrono dos formandos. Orientou 26 dissertações de mestrado e 18 teses de doutorado. Ministrou 50 cursos de pós-graduação, no país e no exterior. Em 2013, tornou-se professor emérito da UFRJ.


João Cabral de Melo Neto


https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=28000686

https://www.academia.org.br/academicos/antonio-carlos-secchin

 

domingo, 27 de dezembro de 2020

RON PERLIM: ESCRITOR ALAGOANO

 Bença

 

A gente vinha de Aracaju. Eu estava cansado, mas o jeito agradável da minha mulher me mantinha atento ao ir e vir da rodovia. Nos aproximamos de uma cidade, cujo nome não me recordo. A primeira coisa que avistamos após a lombada foi um aglomerado de barracas disformes. A frente delas os afrodescendentes vendiam milho cozido e assado. Minha mulher me olhou e disse:

— Me deu uma vontade de comer milho!

Eu estacionei o carro e logo fomos atendidos por uma senhora simpática que nos chamou de “bença”. Essa era a maneira de ela se aproximar dos clientes. Eu era uma bença e todos os que compravam a ela eram uma bença também. Enquanto eu pensava nisso, minha mulher gracejava com a vendedora. Graciosa que era, estava de olho na freguesia e, para não perder tempo, foi direta:

— Bença, faço três espigas por cinco reais.

Minha mulher não fez objeção. Aceitou a proposta dela. Quando estávamos prestes para irmos embora, ela fez uma pausa e disse:

— Minha bença, voltando-se para a minha mulher. — Da próxima vez eu vou dar uma espiga ou uma aguinha ao motorista.

Minha mulher não aguentou. Olhou para mim, riu gostosamente e lhe disse:

— Mulé, não é preciso não. Ele não é motorista não. É meu marido, rindo de mim.

Bença ficou descabreada, mas percebeu que eu não tinha me importado com o que ela disse. Para mim agradar, desfazendo aquele mico, ela insistia em me dar um agrado da próxima vez que parássemos na barraca dela, argumentando que era costume fazer isso com todos os motoristas. Ela só me via como motorista. Tentei compreendê-la. Imaginei que havia por trás disso uma explicação. Aí, perguntei-lhe:

— Por que a senhora faz isso com todos os motoristas?

Ela me surpreendeu, respondendo:

— Sabe por quê? Porque os motoristas só assim vão parar na minha barraca. É pra bater na concorrência. Eu dou milho e aguinha pra eles, tocando no braço de milha mulher, completando: — Nenão Bença!

Aí, eu completei:

— Quer dizer que eu tenho a cara de motorista?

Ela olhou pra minha mulher. Minha mulher olhou pra mim e todos riram.

Todas às vezes que a gente passa pela BR-101 e nos aproximamos de quaisquer barracos, nos lembramos de Bença, do seu modo inteligente de ganhar a vida.

Da última vez que estivemos por lá, não a vimos. Talvez estivesse doente. Talvez tivesse ido para outros lugares expandir seu comércio, ido embora ou até falecido.

Conto publicado no site do autor.

https://www.ronperlim.com.br/

 

Ron Perlim é blogueiro da Aplacc (Academia Penedense de Letras, Artes, Ciências e Cultura), escritor e professor.  Colabora com a Revista Obvius. É membro do Centro de Cultura de Propriá, em Sergipe, presidente do Centro de Cultura Colegiense (Ceculc, Alagoas) Autor dos seguintes livros: Às Margens do Rio Rei, Agonia UrbanaPorto Real do Colégio – Sociedade e CulturaLaura (Premio Alina Paim de Literatura Infanto-juvenil pelo estado de Sergipe),  A menina das queimadasViu o home?, Foi Só Um OlharO povo das águas e Porto Real do Colégio: História e Geografia.  Saiba mais acessando o site oficial do autor: https://www.ronperlim.com.br/

 





sábado, 26 de dezembro de 2020

TRAVESSIA DE ABISMOS

 Abismo

 

esta paisagem transfigurada

apenas incomoda seu leitor

que ouve não suas verdades

mas as mentiras sussurradas

pelo intransigente barqueiro

guardador do último abismo

 

In: Travessia de abismos (2015)

 


Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni (Caprese6 de março de 1475 — Roma18 de fevereiro de 1564), mais conhecido simplesmente como Michelangelo ou Miguel Ângelo, foi um pintorescultorpoeta e arquiteto italiano, considerado um dos maiores criadores da história da arte do ocidente.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

ALFREDO BOSI: O SER E O TEMPO DA POESIA

 Entre minhas tantas leituras teóricas dos tempos da Graduação em Letras Vernáculas na UEFS, destaco este livro fundamental de Alfredo Bosi: O ser e o tempo da poesia. Tenho em minha biblioteca e sempre estou revisitando-o. Considero uma leitura indispensável para os leitores de poesia, professores e escritores. Boa leitura!

 “Contextualizar o poema não é simplesmente datá-lo: é inserir as suas imagens e pensamentos em uma trama já em si mesma multidimensional; uma trama em que o eu lírico vive ora experiências novas, ora lembranças de infância, ora valores tradicionais, ora anseios de mudança, ora suspensão desoladora de crenças e esperanças. A poesia pertence à História Geral, mas é preciso conhecer qual é a história peculiar imanente e operante em cada poema.”

Alfredo Bosi (2000, p.13)

 

"As palavras 'ser' e 'tempo', no título deste volume, definem as tônicas dos seis ensaios que o constituem. São ensaios no sentido mais nobre do gênero: jogo criativo da inteligência a mover-se, alerta e sensível, no espaço que vai do geral ao particular; dos parâmetros da essência às formas de sua atualização histórica; do ser ao tempo da poesia. O ser da poesia - a imagem que 'busca aprisionar a alteridade estranha das coisas e dos homens'; o som no signo, 'a figura do mundo e a música dos sentimentos' recuperadas via linguagem; o ritmo da frase do discurso poético, 'imagem das coisas e movimento do espírito'. O tempo da poesia - a resposta dos poetas ao estilo capitalista e burguês de viver, desde 'o autismo altivo' do 'símbolo fechado' à paródia negativista que 'brinca com o fogo da inteligência'; os valores religiosos, éticos e políticos da ideologia a fundarem a unidade de perspectiva na Divina Comédia; Giambattista Vico, 'mente poética em tempos analíticos' que investigou 'o ser da Poesia, em termos de linguagem', numa abordagem antecipadoramente estrutural".

 

José Paulo Paes

https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=11290

 

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.




 

 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

IGOR ROSSONI: O CONTISTA



 O dia depois de ontem

                                                                                         

Embora não parecesse, 82 permanecera presente.

            A manhã se fizera ausência entre passos disparados em todas as direções. Estávamos há decênios de distância e a sensação percorria-nos a alma desde o baixio ao firmamento.    Estivera separado das recordações por milênios, e agora – diante de ti – tudo ressurge como sucesso incauto e irremediável.

            Como dissera: as ruas andavam apressadas; sugeriam-se fastio e relevância. As horas tolhidas nos acontecimentos perdiam-se em torvelinho e tormentas que – a custo – rompiam ponteiros e estagnações. Portanto, depois de tudo, acordei pelos quartos e algumas aflições; suores noturnos e nublidades.

            – Ontem fora assim... te ouvi a dizer entre dentes. Entanto, por suposto, puro desejo, retomei atenção ao vazio da janela. E parti. E tu falavas e sumias e se deslocavas contrariada; e voltavas. Respiravas e levavas – penso – os dedos entre os cabelos: aquelas velhas cordilheiras. Eu – aos montes – longe; mais perto do esquecimento.

            Deitei-me cedo; logo após meia xícara de leite fresco. Havia calor, ao passo de deixar a janela aberta aos barulhos de fora. Depois, a intemperança. Sim, houve um dia – no passado – a motivar o retorno de tudo, e o fastio de ontem. E hoje. Não dei por fé o momento exato em que desprendi da realidade – olhos baços – e tu falavas e desoladamente andavas e sumias, desaparecias aos olhos e, por pouco, voltavas a ocupar espaço e audições. Então, acordei entre 10 e a sensação era a de que – ao longe, talvez onde os ossos desalcançassem – falavas e andavas sem-fim; e, cabelos ao vento, desaparecias, e algum balbucio de ao-longe indo-vindo o imperceptível, e tornavas a desaparecer  – meus pensamentos –; redivivas audições. Eu, no vagar inglório. Olhos pela paisagem e aquela dor de por-dentro como a recorrer ao insucesso.

            O sol insistisse em arder. Sentei-me dele à sombra, distante da investida que preenchia de amanhecimento onde nos encontrávamos.

            A cada avanço na paisagem, a recordação cede lugar à lembrança e – pelo-mais-pelo-menos – intensifica a sensação de já ter presenciado aquilo todo em quantidade e consideração. Súbito, olho divisou – à meia distância – grupo de jovens que, sugeria, aprumavam instrumentos e tonalidades musicais. Estavam ali – à frente –; e não estavam. Depois do sucedido ainda lá, insistindo contentamento.

            Ontem, não pude divisar pela certeza. Hoje, sim: Monteverdi.  Uma duas três e sempre iniciavam do mesmo ponto. Os passeantes – corridos – pouco lhes mediam presença. Agora, o que restara de então, apenas a presente ausência de notas que insistissem em permanecer n’alma de meus olhos, interpermeados pela vidraça inda fechada; donde a lembrança e a confirmação: sim, Monteverdi, certamente. E eles – no exato – 4 no passeio de tantos a recomeçarem sempre do mesmo ponto. Sempre. Do mesmo ponto. Não mais que meia pequena dúzia de acordes à espera. À espera-de. Seria? Apenas, pacientemente, reiniciavam. Pacientes, re-iniciavam. Apenas passavam sem lhes conferir sentido ou atenção. Meus pensamentos somavam-se aos acordes e, repetidamente, sempre do mesmo ponto, realizavam um dois três poucos balbucios – Paolo – que assim o fosse.  Meus pensamentos somavam-se aos acordes e, repetidamente, sempre do mesmo ponto, realizavam mesmos trajetos e indignações: sorrisos, campos e ventos, algazarras, bandeirolas, piparotes, Magníficat e francas esperanças; inda mais: certeza e antecipadas convicções. Depois: Verdi, perturbações, desmantelos, Otelo, descrença, desconjuro e ruína.    

            Pela vidraça – no translúcido – o curso dos dias, inescrupulosamente. Aliso com o resto de unhas e dedos a vestimenta que, por ainda mais, lhe nubla a visão, e componho cordilheiras no pó, ansiosamente, pelos anos depositado. Ao canto, à esquerda, a cadeira vazia que há pouco me ocuparia espaço. Súbito, olho desviado das paisagens: sim, sim; de imagem repercutida na recordação à vivência real de tempo presente e tempestuoso:

            Bem sei a data e o local. Dezessete e quinze em ponto. Cinco de julho de um mil novecentos e oitenta e dois. Barcelona. Não-mais exitente Sarriá. A tarde parecia de bons agouros, entanto  – talvez – touros já desandassem voo em direção ao desatino e à desmesura a las cinco de la tarde. El viento se llevó los algodones...a las cinco de la tarde...cuando el sudor de nieve fue llegando...a las cinco de la tarde...lo demás era muerte y sólo muerte... a las cinco de la tarde...Ay, qué terribles cinco de la tarde. Eran las cinco em todos los relojes. Eran las cinco en sombra de la tarde. Tudo por vislumbrar e, por mais uma vez, a mesma imagem a percorrer a veracidade do infante insucesso: uma duas três, sempre reiniciando do mesmo ponto: Paolo Paolo Paolo. De sorriso e crença indubitáveis, a tarde enxurrou tempestade, gotas de sangue, aflições e desfalecimento: tudo ali, naquela tarde, ruína e frustrações prenunciadas.

            Se tivesse, teria não mais que uns tantos bons e vividos anos; à penas e catalogações. Par de livros por escrever e, desde lá, saudade de aquilo que dali sentisse carência. Até surgires, e pronto: tudo a desfalecer por vielas e atitudes recortadas, insalubres rotundas e umidades, reconsiderações e desencantos.

            Por mais que insistisse em soterrar o musgo da sensação, a tormenta prosseguia involuntária de minha ansiedade de fuga: desmoronamento. E falavas, falavas, trazendo-me à velha realidade  e – de-novo – ao desejo de entorpecimento: o que eras, era.

            As visões são sempre a recorrência: todos os anos depois dali, ao dúbio esquecimento. Entanto, às vezes – no soar de telefones e telefonemas – certo aceno breve d’espasmo breve, e promessas e esperanças não se contém e extravazam escandalosas pelas bordas do firmamento. Daí o susto, o escárnio do avesso, e a crua atenção à mera possibilidade inconclusa. Fora há muito; e fora para pior. E acabara. Vejo que de lá tudo decaíra a pó, e impregna-me irreverente a ponta dos dedos. Fora queda para além de mero esforço passageiro; portanto, diante de ti, o dia depois de ontem retém a nervura circunspecta de insucesso maior: o de todas as certezas aos frangalhos. Entanto, tudo já prenunciasse desterro e, em verdade, a perda inverossímil em tão-poucos passageiros pulsos – não mais que hora e meia, por suposto – estende-se a outros intercursos e humanas carências; afinal o que são entre-noventa minutos de intermitência? Nada; nada mudaria o curso das incertas e dos nossos mais frágeis desencontros. Que perduram, antesmente.

            E digo que sim. Entre parênteses a memória de cada instante em que a credulidade foi cedendo espaço ao incrudente desfecho; inda não esvaido de todo: a veia negligenciada – violenta – diante daquilo.

            Portanto, mesmo, nada teria a dizer. O nem querer-dizer. Nada insistisse em dizer e agora tu aqui, bem à nossa frente a despetalar de mim as mais destroçadas  sensações; e nos lembrar que – por-tão-por-sem – tudo se acabara, e não. Afinal, vivemos. E tu aqui, a cobrar-me de reviver o que já prontamente esquecido. E despertar: tudo planejado e, à hora exata – às dezessete e quinze daquela tarde depois da outra, ambas fatídicas    ruas desertas, casas recolhidas, olhos atentos e corações à altura de fôlego-à-mingua. Nesses instantes pequenos, eternidade de silêncios: apenas expectativas e pulsações. À cadeira − ali a frente − aproximaram-se outras e tantas mais; quase todos os olhos irmanados diante do almejo: na tela, devidas certezas. Até o fim.

            A música, então, era plena. Sem mais experimentos: soasse a própria melodia. Entanto, o vazio prolongado – à lentidão de meus ouvidos – entre nota e nota encompridava o silêncio alojado-estrondoso em meus pensamentos. Deixo os olhos esquecidos na paisagem. O que resta é nada além de esforço de vidraça – tecido carmesin e pó – em desalinho. A custo, apáticos, me observam; diverso dos teus – provocantes  – como as palavras em desacredito e fúria que despejas sobre meus insanos ouvidos. Se sim, sim; caso não, não. Mas, no extenso, diante de ti, calo; e – dada minha ausência – agita-se, escomungas, esconjuras o deus-o-livre e nunca mais. E o que pensarás mesmo depois de não muito tempo passado? Talvez venhas com promessa de postar penas e caligrafias, e algo a refazer pela palavra a sensação da despedida de coisa muito esperada e – praticamente – concluída, que fracassara.  E  então me furtarias a sorte do esquecimento e me trarias de volta ao convívio com as flores das pequenas angústias e pestes acumuladas. E tu ficas aí, a falar e falar diante de meus mais improváveis deslocamentos.

            Não dei-me de-conta; o tempo esvaido na esgueira da quase-ida manhã. Bem sei o trabalho de dar ordem à normalidade da casa: recolher, descartar, desimpedir, enxaguar, desatar, permanecer, debitar. Afinal, a qualquer momento, vais chegar  e, sem escrúpulos, perguntar-me pelo espelho, que me dispersa em tempo e tempo. E eu, o que a dizer depois de ontem?

            A história de papéis acumula-se à escrivaninha. Caligrafia aos poucos – sofridamente. Apenas promessa de ter corpo tecido e pronto, sem remendos e de boa temperança. Assim, uma duas três, ensaio dizer-te o que esperas ouvir. Entanto, só faço mesmo ausência e as palavras insoam para dentro e, por outra vez, emudecem diante de ti e de mim, a olharem-me com os olhos meus; inquisidoramente.

No repentino, passos dobrados. Corredores externos. Porta entre-aberta. Outros passos. O toque melodioso na fechadura que, por pouco, agride acorde musical – esperança sob sal – e, abrupto: o espelho. Não. Não me vê no-imediato. Distraio-o aos flancos. Invisto pelas tordas. Escorrego entre-lenhos; mas, por estar inda vivo – irremediável – aos poucos e receios, devolto-me da imprecisão à contratura d’encontro, dando-me a ver na imagem de minha imagem nele projetada. Olha-me fixamente os olhos. E eu sei. Nada mais a ser feito. Nada a vingar pudesse.

            Há horas, assim estive: entre mim e o que restara: ontem e hoje.

O sol incidia agora, violento, sobre o quarteto. Instrumentos os reluzia em contraste às vestes negramente veladas. Só então – olhar interdito em ti – o estorvo:  garganta e nó, em não-mais que meias-exaustas palavras.

Afinal, vivos, insistimos.

IGOR ROSSONI

 

Conto pulicado na antologia “82. Uma copa, 15 histórias.” (Organização de Mayrant Gallo). Anajé: Casarão do Verbo, 2013. 155 páginas

http://www.casaraodoverbo.com.br/livros3.html

http://www.carlosribeiroescritor.com.br/novo/livros-publicados/82-uma-copa-quinze-historias/

 


IGOR ROSSONI é arquiteto, escritor, ensaísta, Pós-Doutor em Teoria Literária. É professor do Instituto de Letras da UFBA e de Pós-Graduação no Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade do IHAC-UFBA. Publicou mais de 300 artigos em imprensa escrita, vários capítulos de livros e ensaios científicos. Livros: 
Pátio, 1981; Vértebra, 1983; Zen e a poética auto-reflexiva de Clarice Lispector, 2002; Os inocentes, 2006; Fotogramas do imaginário: Manoel de Barros, 2007; Capturas do instante, 2007; Exercício para clarineta, 2010; Coletâneas: Tardes com anões, 2011; Cenas Brasileiras: ensaios sobre literatura, 2012; Entredentes, 2012; 82 – uma copa, várias histórias, 2013; Frei Russon, 2014; Cruvianas: prosa d’encantar carneiros, 2015; Transfiguração poética do espaço e Guimarães Rosa e Manoel de Barros, 2016. Membro efetivo da Academia de Letras de Santo Amaro - BA. 

 http://oxe.insix.com.br/igor-rossoni/ 

http://blogdaalsa.blogspot.com/





 

 

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

CARVALHO JUNIOR - POETA DO MARANHÃO

 

ARARUTA

 

somos feitos
das mesmas fomes
dos nossos pais,

 

das mesmas lenhas
que os guardaram
do frio súbito das noites
caseadeiras de exílios.

 

de vez em quando,
ouço de longe
a voz da lágrima
do meu pai
e de minha mãe.

 

um quintal de ararutas
nasce dentro
do chão cansado
dos meus olhos.

 

PÍFARO

 

evita
o salto
suicida
de Safo,

 

não a minha sombra morta
dentro do papiro-capemba,

 

na manhã grave ferida
de faca e ferrugem,

 

a flauta do índio
no meio do rio.

 

:


funda o pífaro de taboca
de um gamela

 

treze aldeias de sopro
e milagre nos co(r)pos
de flores

 

que saram os acessos
de flechas
nos meus calcanhares.

 

 

CARVALHO JUNIOR (Francisco de Assis Carvalho da Silva Junior, Caxias/MA, 1985). Professor, ativista cultural, gestor público e poeta brasileiro. Vencedor do Troféu Nauro Machado, categoria poema, no I Festival Maranhense de Conto e Poesia (Universidade Estadual do Maranhão, 2015). Publicou os livros de poemas Mulheres de Carvalho (Café & Lápis, São Luís, 2011), A Rua do Sol e da Lua (Scortecci, São Paulo, 2013), Dança dos dísticos (Editora Patuá, São Paulo, 2014), No alto da ladeira de pedra (Editora Patuá, São Paulo, 2017) e O homem-tijubina & outras cipoadas entre as folhagens da malícia (Editora Patuá, São Paulo, 2019). Organizou a antologia Babaçu Lâmina – 39 poemas (Editora Patuá, São Paulo, 2019), tendo organizado, também, anteriormente, em parcerias, a Antologia Poetas Locais Integrantes da Noite Universal (e-book, 2019, org. com Ricardo Leão) e a antologia/caderno de poemas Quibano: 15 poetas do Maranhão (Appaloosa Books, 2017, org. com Antonio Aílton). Membro da Academia Caxiense de Letras e da ASLEAMA, pesquisa vida e obra do poeta Déo Silva. Realiza, com algumas parcerias, o sarau/encontro de poesia Na Pele da Palavra. Faz parte dos coletivos de autores Academia Fantaxma, Os Integrantes da Noite e O Arco e a Lira. Participou com o poema Abrigos da Exposição POESIA AGORA (Itaú Cultural, Rio de Janeiro, 2017).  Foi o curador da Exposição Sementes de Poesia, em Caxias/MA, no espaço do Caxias Shopping Center (2018). Edita a página de poesia Quatetê.

https://quatete.wordpress.com/












 

 

 


segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

CARURU DOS SETE POETAS


CARURU DOS SETE POETAS

para João Vanderlei de Moraes Filho e Luísa Mahin Nascimento


No chão comemos o caruru dos 7 poetas
Entre versos e tachos e sinestesias e bacias

Os poetas revivem a festa das matas africanas
De seus lábios ecoam os ritmos ancestrais

Rodam no terreiro cavalos da poesia
A palavra sibila no atabaque do malungo

Todos cantam na força da magia
7 poetas comem caruru recitando euforias

“Cantares de Roda” (Editora Via Litterarum, 2011)

Em 2014 foi publicada uma Antologia Poética para comemorar os 10 anos do Caruru dos Sete Poetas: recital com gostinho de dendê (2004-2014)

https://pt.scribd.com/document/243364300/TODAS-AS-MAOS-Antologia-Poetica-Caruru-dos-7-Poetas-pdf

 

1ª Edição do Caruru dos 7 Poetas na Ladeira da Misericórdia, em 2004.


domingo, 20 de dezembro de 2020

A palo seco

 

A PALO SECO

Para Belchior

 

Uma dor profunda rasga mágoas

Esquecidas em varandas matinais

rugas cinzas sulcadas na memória

de mortos sepultados em recônditos quintais.

 

Náusea fluida de muitos goles

porres tomados em bares do subúrbio

calçadas sujas resfriadas pelo mijo

noturno dos filósofos do murmúrio.

 

Ânsia de vômitos seculares

engasgados em gargantas a palo seco

ruas e sombras e postes enrugados

iluminam poetas encurralados pelo beco.

 

Cleberton Santos

Revista Laboratório de Poéticas – nº 9, verão 2011 – Diadema – SP – Editor: José Geraldo Neres / Seleção de José Inácio Vieira de Melo, pp. 52/53

https://pt.calameo.com/read/00041330274c803b91f0c

 




 

 


 

sábado, 19 de dezembro de 2020

KÁTIA BORGES - A teoria da felicidade (crônicas)

 Acaba de ser publicado o mais novo livro da escritora baiana Kátia Borges. O lançamento virtual aconteceu no dia 17/12/2020 pelo canal https://www.youtube.com/watch?v=wCTpNUk59TQ

O livro pode ser adquirido pelo site da Editora Patuá 

https://www.editorapatua.com.br/produto/236970/a-teoria-da-felicidade-de-katia-borges


A teoria da felicidade

Em 2017, os conselhos que Albert Einstein escreveu de próprio punho para oferecer como gorjeta a um camareiro do Hotel Imperial de Tóquio foram vendidos por mais de 1,5 milhão de dólares, durante um leilão em Jerusalém. “Uma vida calma e modesta traz mais felicidade que a busca de sucesso e a inquietação constante”, dizia um dos bilhetes escritos em alemão. “Querer é poder”, ensinava a segunda mensagem.

Sou afeita a aconselhar os outros, confesso; é quase um esporte. Basta um amigo abrir a boca e fazer uma queixa, que elaboro em segundos o plano perfeito. Soluções para espinhela caída, nome no Serasa e amores que não deram certo? Temos. Nem sempre funcionam a contento, isso é verdade. Conselho não se pede e é preciso treino para acertar o alvo. Também não se vende. Mas vejam o caso de Albert Einstein.

Os papéis timbrados do Hotel Imperial de Tóquio com a Teoria da Felicidade atravessaram quase um século e renderam uma fortuna aos netos daquele homem. Aconselhar os outros pede coragem e, nesse sentido, Einstein foi admirável ao apostar na síntese. Não que eu concorde. Afinal, é possível uma vida feliz sem desejos? E, tendo desejos, como manter a quietude? Talvez o problema esteja nos conceitos.

Se olharmos direito, há uma contradição nos bilhetes que guardam os conselhos de Einstein. Um deles estimula a acomodação, o outro exorta ao movimento. É como se ele tivesse dito ao camareiro lá em Tóquio: “Se desejar algo, lute.  Se pode passar sem, mantenha-se quieto”. No fundo, bem lá no fundo, tudo é relatividade. Nesse ponto, meu pensamento inquieto conecta-se com Rainer Maria Rilke.

Em Cartas a um Jovem Poeta, ele orienta Franz Xaver Kappus, que vacila entre a carreira militar e a poesia, por não saber se os seus versos são realmente bons. É quase um teste, e tão valioso quanto a Teoria da Felicidade: “confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever?”. Rilke se exime, desse modo generoso, a um só tempo, do peso da crítica e do conselho. Examine a si mesmo, eis a senha. O resto é silêncio. 

Se os livros didáticos contam a história dos vencedores, desencontros costumam render bons romances. O que dizer dos encontros? Por mais descartáveis, rápidos ou dolorosos, deixam sempre algum legado. Mesmo quando aconselho, por vício quase, à moça desconhecida ao meu lado no banco, desesperada com um pagamento atrasado, que é sempre possível habilitar o aplicativo. 

Conta-se que o físico mais famoso do mundo comemorava solitariamente a notícia de que ganhara o Nobel de Física, naquele dia distante de 1922, quando o camareiro bateu em sua porta para cumprir uma missão rotineira a pedido do hóspede. Sem moedas nos bolsos, improvisou os tais bilhetes como se fosse capaz de prever que algum dia seriam valiosos, talvez como parte dos festejos pelo reconhecimento de sua genialidade.

Ali nasceram instantaneamente os herdeiros milionários de Einstein, como que por milagre. De minha parte, conselheira compulsiva que sou, trago comigo uma orientação que me enriquece em mais de 1,5 milhão de dólares. Vem da infância, emerge viva na memória e é como um mantra ou uma prece. “Cabeça erguida, sempre”, dizia minha mãe, diante de qualquer derrota. Passo adiante agora. Eis, para vocês, à guisa de moedas. Essa é a minha teoria pessoal da felicidade.

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Kátia Borges é baiana, poeta, cronista, jornalista e professora. Autora dos livros De volta à caixa de abelhas (As letras da Bahia, 2002), Uma balada para Janis (P55, 2009), Ticket Zen (Escrituras, 2010), Escorpião Amarelo (P55, 2012), São Selvagem (P55, 2014) e O exercício da distração (Penalux, 2017). Tem poemas incluídos nas coletâneas Roteiro da Poesia Brasileira, anos 2000 (Global, 2009), Traversée d’Océans – Voix poétiques de Bretagne et de Bahia (Éditions Lanore, 2012), Autores Baianos, um Panorama (P55, 2013) e na Mini-Anthology of Brazilian Poetry (Placitas: Malpais Rewiew, 2013). Escreve crônicas semanais desde agosto de 2018. 

Poemas da autora em http://oxe.insix.com.br/katia-borges/