MEMÓRIA DE LIVROS E
BIBLIOTECAS
A lembrança mais
remota que tenho de bibliotecas vem associada a caixotes e malas. Numa caixa de
madeira, mamãe levou para a casa do sertão dos Inhamuns, onde nasci, o pequeno acervo de
professora primária, depois de se casar com um rapaz que fora seu aluno. A
preciosa carga compunha-se de algumas antologias, gramáticas, volumes de
aritmética, geografia e história, e do livro que marcou profundamente minha
vida: A História Sagrada,
uma seleta de textos do Antigo e Novo Testamento.
Os livros eram objetos tão raros nesse mundo sertanejo,
medievalmente fora do tempo, que um parente rico incluiu entre os bens de
partilha do testamento uma minúscula biblioteca de noventa volumes. Hoje, com o
dinheiro apurado na venda de um único boi, das centenas que ele deixava, afora
as terras e outros rebanhos, seria possível comprar dezenas de livros. Naquele
tempo, os objetos de papel impresso davam respeito e distinção, criavam uma
aura de sabedoria e nobreza em torno dos seus afortunados donos.
Não falarei das bibliotecas humanas, embora não deixe de
mencionar os homens e mulheres que guardavam na memória centenas de narrativas
da tradição oral e costumavam contá-las para platéias deslumbradas, geralmente
crianças. Plantados em suas casas, no fundo de uma oficina ou quintal, ou então
viajando pelo mundo, pernoitando em engenhos e fazendas, esses guardiões da
memória se assemelhavam aos personagens que em outras culturas foram
responsáveis pela criação e divulgação de contos, poemas e epopéias mais tarde
fixados em livros como Mahabharata, Ramayana, Epopéia de Gilgamesh, Ilíada, Odisséia e várias narrativas bíblicas.
Falemos das bibliotecas em malas. Também essas exerciam
grande fascínio sobre mim, mas deslumbravam, sobretudo, as pessoas humildes
moradoras do campo. Nos dias de feira, era comum assistir-se o espetáculo de um
vendedor pondo uma lona ou uma esteira de palha no chão, espalhando sobre ela
dezenas de livrinhos impressos nas tipografias, em papel barato de jornal, com
capas ilustradas por xilogravuras. Tratava-se dos
folhetos de cordel ou versos de feira, como também eram chamados.
Para atrair compradores, o
vendedor punha alguma coisa extravagante no meio dos cordéis: um tatu, uma
serpente, a caveira de um jumento… Formado o círculo de curiosos, ele anunciava
os títulos das obras, geralmente com um subtítulo: “Não deixe de comprar O amor de um estudante ou o
poder da inteligência; O mundo pegando fogo por causa
da corrupção; Vida, Tragédia e morte de Juscelino Kubistchek; O sofrimento do povo no golpe da carestia; Os homens voadores da Terra até a Lua; A filha do bandoleiro; Peleja de Serrador e Carneiro”… Depois escolhia o folheto mais instigante e começava a cantá-lo
ou recitá-lo. O ator vendedor sempre possuía boa voz, movia-se com desenvoltura
no pequeno palco, provocava a plateia, criava suspense, fazia rir e chorar e
intuía com precisão o que as pessoas desejavam ouvir.
Durante décadas os folhetos representaram os best-sellers das populações pobres do
nordeste do Brasil. Mesmo quem não sabia ler comprava os livrinhos, pelo gosto
de tê-los guardados, ou na esperança de encontrar alguém que lesse para ele.
Quando um visitante chegava a uma casa modesta do interior, depois do
hospedeiro descobrir que o mesmo era letrado, ia lá dentro num quarto,
arrancava de debaixo da cama uma mala de madeira ou sola abarrotada de livros –
a biblioteca da família analfabeta escondida como um tesouro –, trazia os
folhetos para a sala e suplicava à visita que os lesse.
Tentei compreender as motivações das pessoas que guardam
livros mesmo sendo incapazes de decifrar os sinais impressos nas suas páginas.
O que significam para elas? Essa adoração da gente iletrada me parece de maior
valor que a dos bibliófilos letrados. Há algo de sagrado nesse culto, o mesmo
que se fazia aos Mistérios, àquilo que escapa ao conhecimento e à razão e por
isso se reveste de outros significados.
Ronaldo
Correia de Brito - é escritor e médico, nasceu em
Saboeiro, Ceará, em 2 de julho de 1951. Foi escritor residente da Universidade
de Berkley (Califórnia), participou de diversos eventos internacionais, como a
Feira do Livro de Bogotá, o Festival Internacional de Literatura de Buenos
Aires, o Salon du Livre de Paris e a Feira do Livro de Frankfurt. Sua
carreira artística envolve as mais diferentes linguagens, como literatura,
teatro e música. São de sua autoria O baile do menino deus (teatro), Lua
Cambará (disco), Faca (livro de contos), Galiléia (Prêmio São Paulo de
Literatura), Estive lá fora (romance) e O amor das sombras (contos).
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