Aproveita
“A vida não me chegava pelos jornais nem
pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil.”
Manuel Bandeira
A
linguagem e seus códigos infinitos e misteriosos sempre me impressionaram desde
criança. Pensava muito sobre o nome das coisas: Por que mesa é mesa? Por que
bolo é bolo? Por que azul não é rosa? Quem inventou isso um dia? Com o passar
do tempo esses pensamentos só se adensaram. Quando descobri que existiam outras
línguas que não só a nossa a curiosidade só aumentou. Lembram-se das
brincadeiras infames “fale pescoço em francês”? Que absurdo um palavrão!
Aliás,
palavrão na infância é um capítulo a parte da nossa língua. Depois da primeira
infância com sua escatologia peculiar, que me abstenho de aqui repetir,
avançamos para outra esfera. Éramos três meninas em casa com um pai que xingava
muito e uma mãe que nos proibia de dizer
nome feio. Entre nós três, o desaforo preferido eram os nomes de cobras, tão suaves
e femininos: Cascavel, Surucucu, Caninana, Naja, Sucuri. Mas quando o pau
quebrava mesmo, saia o inominável “Sai da frente Espelho sem luz” que era uma
ofensa gravíssima para o desespero de nossa mãe.
Mais
tarde descobri e me apaixonei perdidamente pela etimologia, a possibilidade de
descobrir a origem das palavras é mesmo fascinante. Sou apaixonada por prefixos
e sufixos e isso me salvou muitas vezes na compreensão de alguns termos. Sobretudo,
os resultados de exames e termos técnicos de várias áreas que mais se parecem
com um código secreto e indecifrável. Adoro o capítulo da gramática que trata
do processo de formação das palavras e aquela lista de pedacinhos gregos e
latinos que se casam e dão sentidos incríveis à língua e ainda se juntaram no
Português brasileiro com termos africanos e indígenas, nossa geleia geral. Com os dicionários então tenho um caso de
amor, não me canso de folheá-los aleatoriamente e descobrir uma palavra nova,
ou verificar aquela quinta acepção de um termo que é o que se encaixa naquilo
que a gente leu, diferentemente da primeira, mais fácil e comum.
Mas
na verdade nenhum manual dá conta da dinâmica da linguagem. Ela é viva e se
realiza na língua do povo, “na língua gostosa do povo”, na sua semântica
movente, que faz bárbaro, sinistro e “da porra” virarem elogios. Aliás esse
último é de uma polissemia incontornável e se encaixa em várias classes
gramaticais que vão do substantivo à interjeição. Dentre um dos seus usos que
mais me impressionam está a expressão: “Boa porra”! Ela desestabiliza qualquer
conversa. Você diz: Hoje encontrei fulano! Seu amigo responde com aquela
entonação de desprezo: - Boa porra! Não
precisa dizer mais nada, para ele esse alguém é um ser desprezível E sem
salvação. Acontece também quando você quer enaltecer algum feito: Fulaninho se
formou, foi para Europa, casou... E alguém devolve de lá: Boa porra! Fim de
papo, não há mais como continuar esse diálogo.
Agora
esse “bolodoro”, esse “trololó”, esse “cerca Lourenço” todo é porque eu quero
falar de outra expressão, que na verdade é uma teoria: Teoria do Aproveita. Uma das mais complexas
que existem e tenho certeza que todos a utilizam de alguma forma ou já foram
vítimas de sua sofisticada teia. Ela faz com que você acredite que fazer um
grande favor para o outro é muito bom para você. Na verdade é a teoria do se
aproveita. Vejamos algumas de suas aplicações:
Quarto
do casal à noite, um levanta para ir ao banheiro ou cozinha, o cônjuge deitado
(substantivo sobrecomum de propósito, pode ser um dos dois), que parecia estar
à espera daquele momento, imediatamente dá o bote: --Aproveita que você
levantou e traz um chá para mim. Aproveita e traz um pedaço de bolo, traz duas
laranjas, um prato e uma faca e vê se a luz da garagem ficou acesa... Saia
logo, a lista pode aumentar...
Você
diz que vai a São Paulo alguém logo se pronuncia: - Aproveita que tu vai, tem
uma loja na Vinte e Cinco de Março, facílima de achar, que tem um creme de cabelo ótimo, você vai adorar, traz
um para mim e a gente acerta. E lá vai
você viajar pensando no maldito creme e se sentido culpada de dizer não para um
favorzinho tão simples. Se a viagem for internacional então, pule fora, se
esconda por um tempo, não anuncie, vai rolar listas, marcas, lojas, dicas, tudo
baseado na Teoria do Aproveita.
Eu
tenho uma tia, especialista nessa teoria, e como ela conhecia gente nos quatro
cantos do Brasil era um perigo falar na frente dela que você ia em tal lugar:
Ah, você vai na Paraíba? Vai levar um requeijão para minha comadre Neuza e
ainda sugeria que a gente visitasse amigas íntimas que só ela conhecia em nome
dela. E lá ia a vítima com um bocapiu a mais na bagagem.
As
situações são muitas e se multiplicam, você vai a uma consulta médica e alguém
pede para você fazer uma pergunta sobre o problema dele. Vai ao Supermercado Baratão?
Aproveita e traz um shampoo anti-caspa para mim que só tem lá. Vai à farmácia,
ao menos um band aid vão te pedir.
Essa teoria é uma boa porra... Agora corra mesmo se alguém começar a conversa
com: Eu nunca te pedi nada! Corra porque é barril, roubada, bucha, saia-justa, roleta,
esparro, boca de...
(Crônica
do livro inédito)
Alana Freitas El Fahl, nascida e
criada em Feira de Santana. Professora Titular de Literatura Portuguesa e
Brasileira da Universidade Estadual de Feira de Santana. Autora dos livros “Singularidades
Narrativas: Uma leitura dos contos de Eça de Queirós” e do livro de crônicas “Nós
que apagamos a lua”, criadora do blog “Entretelas” no qual analisa novelas,
séries e filmes à luz da Teoria Literária. @entretelasblog
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