terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Crônica de Clóvis Ramaiana


            Muitas palavras atravessam o nosso cotidiano. Habituados à vida veloz dos modernos tempos, as usamos como mercadorias, algumas transformadas em usos e fixadas no cotidiano, outras apenas trocas, rapidamente descartadas e, em alguma fileira do supermercado, aguardam a hora de serem recuperadas outra vez. Quantas vezes se usa o amor como instrumento de troca? Quantos amigos foram ao lixo pela utilização perdulária desse importante vocábulo? São questões que a falta de tempo não nos deixa tratar.
            Sou de um tempo distante, época em que certas palavras, geralmente curtas, eram deslocadas para o panteão da glória, e dali dificilmente removidas. Apenas em casos de desastres naturais saíam. Mãe, pai, avó, avô, filha, filho, madrinha e padrinho (pelo menos no meu caso), prima e primo. Amigo? (Lembro-me bem de um velho senhor, em 1980, apontando para meu avô e dizendo: “Meu amigo de mais de cinquet’anos”.) Era coisa para suportar os apartamentos do tempo e da razão, inscrição tatuada no coração. Como esquecer o gigantesco Neli da Boa Hora, já idoso, referindo-se a minha avó como “Dindinha Palmira”, como se fosse, ainda, uma meiga criança? As palavrinhas, nas suas caminhadas, recebiam marcas do tempo, poeiras de sentimentos, tintas amorosamente depositadas e que emergiam das experiências em comum. Palavras com conteúdo, eram vocábulos que suportavam a dura crítica do orgulho.
            Todavia, a feroz velocidade do tempo encurtou o altar sagrado, retirou dinhas e dinhos, removeu primos e primas, dessignificou vós e vôs. Em certos casos, o orgulho de ter deslocou o gosto de pertencer. Nesses, mesmo mãe e pai deixaram o panteão e agora são traduzidos de outra maneira. Abriu-se a era do “faz o que eu mando ou faz o que eu mando”. Não que antes o autoritarismo não mediasse as palavras, claro que sim, mas agora o não cumprimento das ordens significa a exclusão, o veto, a condenação ao limbo. Um único “não” pode esvaziar o mais nobre dos vocábulos. “Mãe” pode ter seu sentido cassado pela apresentação de uma única negativa. No reino das trocas, a anuência em tudo é a moeda para garantir velhos sentimentos.
                                                                                     
Clóvis Frederico Ramaiana Moraes Oliveira – escritor, historiador e professor da UNEB/UEFS.
Crônica do livro ainda inédito “Cesta de retalhos: memorial de afetos, desesquecimentos e ternidades”.




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