POESIA E OFERTA
Sandro Ornellas
Poeta e professor da UFBA
“E para
que poetas em tempo de penúria?”, pergunta Friedrich Hoelderlin na sétima de
suas odes, intituladas Pão e vinho,
na antessala da modernidade, a mesma que valorizará excessivamente a técnica e
a tecnologia, o dinheiro e o valor de troca dos bens, financeiros e simbólicos,
fazendo comércio de toda experiência acumulada de vida e mudando-a em mera sensação,
imediata e privada. Se o poeta nesse cenário foi catapultado para a margem – por
produzir um bem tão pouco ou nada mensurável, tão pouco ou nada afeito à lógica
financeira e comercial, tão pouco ou nada semelhante à lógica da troca sócio-econômica
– digamos que é aí justamente que está a sua força: a intempestividade e o
deslocamento permanentes. Em uma época como a nossa, tão imersa na novidade jornalística
que transforma tudo em informação, tão voltada para uma falsa tecnofelicidade,
para o medusamento publicitário, a poesia – exatamente por não possuir qualquer
valor de troca no mercado de bens culturais – é a novidade que permanece sempre
novidade. Sua contemporaneidade está precisamente na sua extemporaneidade. Enquanto
todos vão, a poesia e o poeta já voltaram, renovados. É aí que está o traço
mais característico deste novo livro de poemas de Cleberton Santos – Cantares de roda – e o que o justifica.
“Não
quero mais cantar / para homens feitos de solidão”, afirma sem meias palavras Cleberton,
no início de “Anúncio”. E ouso, agora eu, afirmar que esse anúncio é cumprido quase
que à risca ao longo de todo este seu novo livro. A sua ideia é muito
propriamente essa: dar as mãos aos leitores e propor uma cantiga, uma dança e
uma roda, uma alegria compartilhada. Compartilhada. Ao rejeitar “homens feitos
de solidão”, Cleberton rejeita também a percepção comum da solidão do poeta,
abandonado pelo leitor moderno, como também rejeita a solidão do leitor,
esquecido pelo poeta moderno. Com inteligência e sensibilidade, o efeito
buscado e alcançado ao longo do discurso deste livro é o da oferta de experiências
comuns, cabendo ao poeta sua razão mais fundamental: fixar essas experiências
na memória de todos, através da palavra do poema. E Cleberton sabe disso, como
mostra em “A razão do poeta”: “Não cantar / ficar para semente / eis a raiz do
poema. // Não morrer / ficar na escansão do presente / eis a razão do poeta”.
São vários
os caminhos que Cleberton usa para estender a mão ao leitor e iniciar os seus cantares,
mas o principal talvez seja o de buscar ser audível e inteligível. Qualidades
que a poesia contemporânea volta a exercitar desde as últimas décadas e que em
Cleberton se destacam com habilidade: “Meu
canto de vida, / Brasileiros, ouvi: / Sou filho do samba, / No samba cresci; /
Brasileiros, descendo / Do grande rei Zumbi” (“Filho do samba”). Sua
técnica é intensificada para se ocultar, em proveito da roda, como uma espécie
de dádiva, de dom que o poeta oferece à sua comunidade de leitores, a exemplo do
poema que abre o discurso do livro, como um presente, “Cantares de amigo”: “Vamos
cantar esta tarde sem pejo / de sermos somente sementes de alegria / de sermos
sementes somente renascidas / (...)”. O “nós” do sujeito desfazendo os “nós” do
texto para de mãos dadas drummondianamente semearem esperança, “razão do poeta”.
Mas se
a cantiga é extemporânea por ser ancestral, esse arcaísmo (de arché: origem) do seu discurso é também cada
vez mais contemporâneo no modo como Cleberton naturaliza a sua técnica poética:
não há nos seus poemas fogos de artifício sintáticos, explosões imagéticas ou
preciosismos lexicais, há a tradição dos ritmos e das formas temáticas da
poesia, há inteligentes (não mumificados) usos de redondilhas e anáforas, assim
como nas referências ao universo negro-popular em “Samba de roda”, “Carnaval”, “Roda”,
“Ciranda”, “Menestrel”, dentre outros, assim como ao erotismo amoroso de “Canção
da amiga” e “Luz da paixão”. Neste, o chiaroscuro
dá a ambiência erótica conjugando-se ao cavalgamento rítmico entre os versos:
“Amanhecer em teus braços, / pleno do gozo de uma noite / escura, sentir meu
corpo / claro sempre à tua procura”. Há também outras imagens variadas, e francamente
legíveis no seu sentido, imagens alegóricas de imaginários comuns, como em
“Barco”, ou imagens mais pessoais, como na série final “Fuga da criação”.
Texto
legível, técnica inteligível, sensibilidade temática e experiência cultural: é
o que se vê e se lê neste terceiro livro de Cleberton Santos, é o que oferece o
poeta aos seus leitores, sua dádiva, seu dom em forma de canto e poema. Cleberton,
portanto, nos dá o que não se resume ao poema, mas nele encontra sua expressão
mais concentrada: poesia. Que o leitor abra este livro como uma espécie de
gesto especial, não esperando soluções mágicas para a vida e seus impasses, mas
com a certeza de encontrar poemas prontos para fazer o que lhes cabe: cantar
esperanças, dores, origens e amores que todos conhecemos e com os quais
sonhamos, mesmo que não os conquistemos:
Atirei
Sonhos na amada
Mas meus sonhos foram só
meus
Pois a amada não gosta de
sonhos
E só sabe dizer adeus (“Roda
do desamor”).
Salvador,
junho de 2011.
Texto
publicado no livro “Cantares de Roda”.
Um comentário:
Muito boa essa observação. O livro é de perfeita qualidade e as poesias remetem a quem ler um achado de bem estar fazendo viajar através das próprias memórias.
CANTARES DE RODA
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