sexta-feira, 17 de setembro de 2010

A RIQUEZA DE UM MESTRE ESCRITOR

A RIQUEZA DE UM
MESTRE ESCRITOR

Por Jocenilson Ribeiro[1]

Seria um detalhe qualquer e, talvez, menos importante ainda se o ato de abrir um livro e degustar as palavras com os olhos atentos fosse costumeiro no dia-a-dia dos brasileiros. Poderíamos dizer que tomar um livro e só fechá-lo após a leitura da última página não nos chamaria a atenção se tal hábito fosse tão corriqueiro e como o é a alimentação diária, porque, se o alimento nos proporciona reposição de energia - imprescindível à vida - do mesmo modo, a leitura pode ser encarada como fonte de conhecimento capaz de nos salvar da ignorância e possibilitar a competência criativa que dá sentido a nossa vida. De onde partiu essa reflexão? O que a motivou? Logo o leitor saberá!
Depois de um feriado prolongado coadunando Réveillon numa quinta-feira, primeiro dia do ano numa sexta e, de brinde, um sábado e domingo de sol nas praias do litoral sul da Bahia, qualquer sacrifício ou óbice numa segunda-feira de volta para casa vale a pena. Até mesmo uma fila quilométrica como aquela que encarei por exatas quatro horas e quarenta minutos no terminal marítimo de Bom Despacho para pegar o ferry boat com destino a Salvador.
Em meio ao calor, pessoas esparramadas por todos os lados confundindo-se com suas sacolas, crianças, bagagens, furadores de fila tentando se aproveitar do cansaço alheio, ambulantes buscando ganhar o pão, conversas dos comboios confundindo-se com os gritos de alguns gaiatos que, sem saber reivindicar o descaso com os serviços de transportes, pareciam rebeldes sem causa... tudo isso só me fez desejar um bom livro e mergulhá-lo nele até que alguém me avisasse: “jovem, é a sua vez de passar no guichê”.
Enquanto não avistava o tal guichê, e faltava mais de três horas para dele me aproximar, abri a mala e retirei o livro de crônicas A riqueza do detalhe, do professor e escritor Moacir Saraiva. Reli a dedicatória “Amado aluno, tu és um vitorioso porque sabes observar os detalhes da vida” e pus-me a pensar sobre essa assertiva por um bom tempo: qual era a minha vitória? Sem chegar a uma conclusão, comecei a manusear o livro como um menino que ganha um barco de papel e não sabe se o põe no rio ou evita que o curso da água lhe roube a pequena embarcação e o entregue a outra margem do rio.
Inicialmente observei as informações técnicas da obra, diagramação, editora, número de páginas, ficha catalográfica, número de crônicas, seus títulos curiosos, a capa e biografia do autor na orelha. Por um instante, rememorei meus três anos de segundo grau quando tive o privilégio de iniciar-me na literatura e estudos de língua com o professor Saraiva - era assim que a ele nos referíamos nos espaços do CEFET, hoje IFBA. O tempo passou, e já faz dez anos que sinto saudade dos tempos em que ouvia alguns de seus jargões afetivos como, por exemplo, “alunos são criações do diabo”. Só homens de letras como Moacir sabem usar as palavras ao avesso ou ressignificá-las positivamente.
“Moço, a fila anda” - alertou-me a senhora que vinha atrás de mim. Obrigado, eu disse. Corri os dedos entre as páginas para ler uma crônica qualquer entre as 34 que compõem o livro, mas mudei de ideia. Por que não começar do começo?
A crônica de título homônimo à obra me veio como uma lição filosófica, e alguns enunciados me fizeram pensar muito sobre aquele momento, aquele aglomerado de pessoas aflitas por voltarem para suas casas e viverem suas individualidades. Eu queria minha individualidade, e o livro certamente me possibilitaria o prazer de resgatá-la e me sentir “um vitorioso” como disse o mestre escritor. A crônica traz uma reflexão acerca da valorização do detalhe, a riqueza que a constitui e nos constitui enquanto sensíveis à diferença, intérpretes de significados do mundo que nos cerca. Para Moacir, perceber a riqueza do detalhe é, por exemplo, “escutar aquilo que não é ouvido por ninguém”, é ouvir “sussurros longínquos, batimentos cardíacos de um beija-flor”. Quer poesia melhor que essa? Certamente haverá mais no decorrer das narrativas, eu pensei.
Minha leitura seguia muito mais rápida que a fila ao sol a pino, e eu talvez fosse um detalhe na multidão, já que o livro em punho me excluía dos iguais. Por outro lado, o livro me fazia alvo a ponto de incomodar os que tinham pressa: “cara, você não poderia ler e prestar atenção à fila?”, disse um homem incomodado. A leitura me roubava a atenção... pouco me importava com a fila.
À medida que ganhava as páginas, percebia a riqueza literária de cada texto, e sua linguagem simples me aproximava das histórias e fatos do cotidiano que poderiam ser contados por qualquer uma pessoa versada nas letras; contudo, jamais teríamos o prazer de ler tais crônicas sem a arte de Moacir Saraiva. Como um mestre da escrita atento à forma, ao discurso, à estética e à originalidade com que se escreve o texto, Moacir nos apresenta desde uma semântica de expressões populares a uma pitada de história das palavras como greve, aluno, barbeiro, cabeleireiro, podador, onzeneiro.
Se o humor e o riso são recorrentes em crônicas como Guardador de banha, ‘Esqueça, delegado’, O podador, Guerra Santa e “Fazer feira”, a ironia suavizada em metáfora se faz presente em Suicídio dos Peixes, Os donos do mundo, A aparência, O profissional “intruso” entre outras excelentes crônicas, convocando-nos a pensar acerca de questões cotidianas em que aparecem em voga o egocentrismo, a consumismo e a arrogância que contaminam a sociedade atual.
Por outro lado, não é difícil notar o próprio Moacir lecionando para o leitor como se tivesse diante de uma classe de aprendizes quando não em sala de formação de professores. Peraltice de aluno, por exemplo, veio-me como um dos textos de dupla função: b) resgatar as memórias de moleque do tempo em que eu e meus colegas subvertíamos a norma que pretendia nos enquadrar à condição de aprendizes comportados quando não quadrados; e b) ensinar-me como ser mais esperto no exercício da docência, subvertendo as peripécias da garotada sem perder a sensibilidade com o alunado e a compostura de educador, já que, conforme Moacir Saraiva, “o aluno, muitas vezes, procura criar embaraços aos professores a fim de ver a reação para depois rir da cara do mestre”.
De todas as crônicas que havia lido naquela tarde de sol forte em meio à multidão enfileirada, As chinelas, a meu ver, tinha uma especificidade que lhe categorizava aos moldes do conto moderno do que da própria crônica. Digo isso porque, com base em clássicos da crítica literária brasileira como Antônio Cândido, Afonso Romano, Massaud Moisés, o gênero conto depreende uma narrativa breve, rica em detalhes essenciais ao propósito da construção literária. Os personagens e a trama em que se circunscreve o acontecimento põem o texto na mesma dimensão de narrativas de Dalton Trevisan e de Rubens Fonseca tanto no que tange à estética quanto à própria brevidade com que conta fatos cotidianos. Enfim, nada melhor que um texto desse predicado para fechar A riqueza do detalhe.
Ainda li a última crônica quando estava próximo do saguão de embarque do ferry foat, e senti vontade de voltar a outras de igual qualidade a As chinelas. No entanto, fechei o livro assim que me dei conta de que seria o próximo a passar no guichê. Embora tivesse certeza de que estava ali por bastante tempo, a leitura encurtou o caminho, reduziu as horas e me ensinou muito naquela tarde. Olhei para trás e vi a fila dando voltas, e, até onde os olhos puderam alcançar, percebi que ninguém trazia um livro em mãos para encurtar distâncias, para diminuir a ignorância social, para ajudá-lo a enxergar os detalhes além daquilo que saltam aos olhos da multidão e nos coloca em bloco dos iguais.
Com A riqueza do detalhe, o professor Moacir nos dá uma aula de sensibilidade e apreço à vida simples e aos valores do homem que ainda resiste ao tecnocentrismo e aos males do capitalismo agressivo que tenta nos cegar. E com este livro, Valença, aos poucos, ganha um espaço na literatura baiana ao passo que convoca os filhos dessa terra nunca vencida a ler, a escrever e a pensar porque Moacir Saraiva, entre outros, já começou. Concluí que sou sim um homem vitorioso, sobretudo por ter sido fruto dessa terra e aluno deste mestre escritor.

[1]Jocenilson Ribeiro nasceu em Jaguaripe-BA, mudando-se para Valença-Ba onde concluiu os estudos secundários pelo CEFET em 2002. É licenciado em Letras pela Universidade Estadual de Feira de Santana (2007). Atualmente reside em São Paulo, onde cursa Mestrado em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). jonuefs@gmail.com

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