Muitas
palavras atravessam o nosso cotidiano. Habituados à vida veloz dos modernos
tempos, as usamos como mercadorias, algumas transformadas em usos e fixadas no
cotidiano, outras apenas trocas, rapidamente descartadas e, em alguma fileira
do supermercado, aguardam a hora de serem recuperadas outra vez. Quantas vezes
se usa o amor como instrumento de troca? Quantos amigos foram ao lixo pela
utilização perdulária desse importante vocábulo? São questões que a falta de
tempo não nos deixa tratar.
Sou
de um tempo distante, época em que certas palavras, geralmente curtas, eram
deslocadas para o panteão da glória, e dali dificilmente removidas. Apenas em
casos de desastres naturais saíam. Mãe, pai, avó, avô, filha, filho, madrinha e
padrinho (pelo menos no meu caso), prima e primo. Amigo? (Lembro-me bem de um
velho senhor, em 1980, apontando para meu avô e dizendo: “Meu amigo de mais de
cinquet’anos”.) Era coisa para suportar os apartamentos do tempo e da razão, inscrição
tatuada no coração. Como esquecer o gigantesco Neli da Boa Hora, já idoso,
referindo-se a minha avó como “Dindinha Palmira”, como se fosse, ainda, uma
meiga criança? As palavrinhas, nas suas caminhadas, recebiam marcas do tempo,
poeiras de sentimentos, tintas amorosamente depositadas e que emergiam das
experiências em comum. Palavras com conteúdo, eram vocábulos que suportavam a
dura crítica do orgulho.
Todavia,
a feroz velocidade do tempo encurtou o altar sagrado, retirou dinhas e dinhos,
removeu primos e primas, dessignificou vós e vôs. Em certos casos, o orgulho de
ter deslocou o gosto de pertencer. Nesses, mesmo mãe e pai deixaram o panteão e
agora são traduzidos de outra maneira. Abriu-se a era do “faz o que eu mando ou
faz o que eu mando”. Não que antes o autoritarismo não mediasse as palavras,
claro que sim, mas agora o não cumprimento das ordens significa a exclusão, o
veto, a condenação ao limbo. Um único “não” pode esvaziar o mais nobre dos
vocábulos. “Mãe” pode ter seu sentido cassado pela apresentação de uma única
negativa. No reino das trocas, a anuência em tudo é a moeda para garantir
velhos sentimentos.
Clóvis Frederico Ramaiana Moraes
Oliveira – escritor, historiador e professor da UNEB/UEFS.
Crônica do livro ainda inédito “Cesta de
retalhos: memorial de afetos, desesquecimentos e ternidades”.