O romance “Tonho” é literatura para reconquistar a vida.
“Tonho
estava passando seus piores dias. As pessoas comentando seu jeito de ser, e o
incômodo do seu ser era maior do que os alheios comentários.” (p.15)
Fui
acompanhando os dias da vida de Tonho através de 130 páginas de uma história
envolvente sobre a complexa existência humana e revendo a nossa própria
condição de fragilidade pela voz de uma narradora apaixonada em contar esse
drama que muitos conhecem na própria pele e outros ignoram: o sofrimento
psíquico. Um livro que me conquistou nas primeiras páginas, depois de sentir
que precisava saber qual seria o destino de Tonho, não para julgá-lo pela verdade
do meu espelho, mas para descobrir o quanto de Tonho carrego em meu ser e
quantos outros “Tonhos” passam pela minha estrada. Assim, passei vinte dias
lendo “Tonho”, primeiro romance publicado pela jovem escritora feirense Tatiana
Costa Valverde, e buscando conhecer os mistérios de Deus e da Natureza pelos
diálogos filosofais que tecem a trama da narrativa.
Conhecer a
trajetória do jovem sertanejo Tonho e seu cavalo Donato (amigo e confidente) é
revisitar os espaços interrogativos da alma humana em toda sua múltipla
possibilidade de existir e resistir. A
escritora Tatiana Valverde nos conquista com uma narrativa de linguagem
fluente, frases curtas, cortes cinematográficos entre o exterior da paisagem
sertaneja e o interior das divagações do pensamento e sentimento das
personagens que travam suas lutas com as dores da vida. Tatiana é também poeta
e, por isso mesmo, soube tecer em seu romance uma linguagem descritiva intercalada
com aquelas lâminas poéticas que atravessam os textos narrativos de autores
como Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Adonias Filho e Aleilton Fonseca.
“Mas não se
vê muitas vezes o amor. Não por maldade, mas por desvio. Às vezes, bate um
desvio sobre o ser, que toma tudo o quanto é razão. Até leva a razão de viver.
Tem-se que ter grande atenção para essas coisas. As vistas ficam turvas, de vez
em quando, o coração esvazia, a alma parece nem mais estar no corpo, e o corpo,
que o corpo? Um monte de ossos, em carne, com umas veias trazendo e levando
sangue não sei para onde. E o comer vira fardo. Se aquiete, porque é momento de
angústia, diga-se de passagem, muito triste, quando a mente dana a ser mais que
você, na plena mocidade, na plena manhã, te dando ordem de parar, ou
ordenamento de não ter para aonde ir...” (p. 27-28)
Além dos
amplos diálogos com Donato, Tonho também tem um caderno para escrever sua vida
como se tivesse consciência de que sua história deve ser anotada para não cair
no esquecimento do tempo. O romance apresenta uma escritora que transforma a
própria escrita (dela e de Tonho) numa atividade terapêutica como sempre apontaram
outros poetas, filósofos e psicólogos. Escrever para não morrer. Ler para
renascer pela vida dos outros ou como disse o poeta Manoel de Barros “Mas eu
preciso ser Outros”. A literatura sempre como uma reconquista da vida.
Tonho, seu
cavalo Donato, sua mãe e sua irmã formam a primeira parte da história que
caminha muito mais pelos vazios da vida, páginas de muita melancolia. O pai é
ausência, uma ferida que repercute no coração de Tonho como no de tantos filhos
e filhas que são “carentes de pai” nesse tão duro sertão-Brasil.
“Na roça,
no Sertão Nordestino, moram Tonho, a mãe Dona Maria, e a irmã Dorinha. A casa,
a mesma onde os filhos nasceram e cresceram, é a que viu Jovelino largar o
filho aos dois anos de idade e a filha com seis meses de nascida. Sem motivo ou
explicação dada à mulher, a casa não mais o viu. E assim cresceram os irmãos,
entre nós e apegos, entre afagos e afetos, correntes e desesperos, espinhos e
lágrimas, entre os rios que correm nas veias de Tonho.” (p. 14)
Uma
história contada por uma narradora que vai envolvendo cada leitor pelo
interesse e pela solidariedade, sentimento tão faltoso nos dias atuais, que nos
faz abraçar a vida e o drama de Tonho e sua família.
Mas, como
todo sertão é travessia, como bem nos ensinou Guimarães Rosa, o ser de Tonho
também precisa atravessar as dores, os vazios, a solidão, a violência do olhar
do outro, a falta de afeto de um mundo seco de empatias e tantos outros
espinhos espalhados pela paisagem e pelas línguas ferinas, para depois
esperançar por uma nova vida. Clara é amor. E o amor é também uma porta de
salvação para si mesmo e para o outro.
Não quero
revelar demais as riquezas da odisseia de Tonho pelo sertão de si mesmo. Digo apenas que foi encantador pegar também meu
cavalo de barro imaginário e cavalgar com o “filho de Maria” pelas veredas tão
sombrias e claras, tão tristes e alegres, tão solitárias e solidárias que
somente a literatura pode nos levar para conhecer nossa alma através dessas
almas quase tão reais. Tatiana Costa Valverde entrega aos seus leitores e
leitoras uma história de grande força existencial, de lirismo, de ternura, de
valentia e conquista. Afinal de contas, “viver é muito perigoso”, num é
Riobaldo?
E Tonho,
assim como tantos personagens da ficção e da realidade, sabe que é preciso
renascer de corpo e alma para continuar no sertão e seguir os passos da leveza
que o amor e a amizade podem sempre nos ofertar.
“Depois de
tanto tempo, Tonho seguiu os passos da leveza. Por instantes esqueceu-se do
vazio que inundava a alma. Solidão. Angústia. Tinha um outro sertão além do que
estava imerso. E era sertão leve. Com cheiro de alfazema. Claro. Nítido.
Límpido. Ingênuo. Seria Clara, talvez, clareando as ideias e os espinhos.” (p.
77)
Tatiana Costa Valverde. Tonho. Editora Mondrongo, 2018. Prefácio
de Aleilton Fonseca.
Cleberton Santos
Feira de Santana, 19 de outubro de 2021.