quarta-feira, 20 de outubro de 2021

UMA LEITURA DO ROMANCE DE TATIANA COSTA VALVERDE

 

O romance “Tonho” é literatura para reconquistar a vida.

 

“Tonho estava passando seus piores dias. As pessoas comentando seu jeito de ser, e o incômodo do seu ser era maior do que os alheios comentários.” (p.15)

Fui acompanhando os dias da vida de Tonho através de 130 páginas de uma história envolvente sobre a complexa existência humana e revendo a nossa própria condição de fragilidade pela voz de uma narradora apaixonada em contar esse drama que muitos conhecem na própria pele e outros ignoram: o sofrimento psíquico. Um livro que me conquistou nas primeiras páginas, depois de sentir que precisava saber qual seria o destino de Tonho, não para julgá-lo pela verdade do meu espelho, mas para descobrir o quanto de Tonho carrego em meu ser e quantos outros “Tonhos” passam pela minha estrada. Assim, passei vinte dias lendo “Tonho”, primeiro romance publicado pela jovem escritora feirense Tatiana Costa Valverde, e buscando conhecer os mistérios de Deus e da Natureza pelos diálogos filosofais que tecem a trama da narrativa.

Conhecer a trajetória do jovem sertanejo Tonho e seu cavalo Donato (amigo e confidente) é revisitar os espaços interrogativos da alma humana em toda sua múltipla possibilidade de existir e resistir.  A escritora Tatiana Valverde nos conquista com uma narrativa de linguagem fluente, frases curtas, cortes cinematográficos entre o exterior da paisagem sertaneja e o interior das divagações do pensamento e sentimento das personagens que travam suas lutas com as dores da vida. Tatiana é também poeta e, por isso mesmo, soube tecer em seu romance uma linguagem descritiva intercalada com aquelas lâminas poéticas que atravessam os textos narrativos de autores como Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Adonias Filho e Aleilton Fonseca.

“Mas não se vê muitas vezes o amor. Não por maldade, mas por desvio. Às vezes, bate um desvio sobre o ser, que toma tudo o quanto é razão. Até leva a razão de viver. Tem-se que ter grande atenção para essas coisas. As vistas ficam turvas, de vez em quando, o coração esvazia, a alma parece nem mais estar no corpo, e o corpo, que o corpo? Um monte de ossos, em carne, com umas veias trazendo e levando sangue não sei para onde. E o comer vira fardo. Se aquiete, porque é momento de angústia, diga-se de passagem, muito triste, quando a mente dana a ser mais que você, na plena mocidade, na plena manhã, te dando ordem de parar, ou ordenamento de não ter para aonde ir...” (p. 27-28)

Além dos amplos diálogos com Donato, Tonho também tem um caderno para escrever sua vida como se tivesse consciência de que sua história deve ser anotada para não cair no esquecimento do tempo. O romance apresenta uma escritora que transforma a própria escrita (dela e de Tonho) numa atividade terapêutica como sempre apontaram outros poetas, filósofos e psicólogos. Escrever para não morrer. Ler para renascer pela vida dos outros ou como disse o poeta Manoel de Barros “Mas eu preciso ser Outros”. A literatura sempre como uma reconquista da vida.  

Tonho, seu cavalo Donato, sua mãe e sua irmã formam a primeira parte da história que caminha muito mais pelos vazios da vida, páginas de muita melancolia. O pai é ausência, uma ferida que repercute no coração de Tonho como no de tantos filhos e filhas que são “carentes de pai” nesse tão duro sertão-Brasil.

“Na roça, no Sertão Nordestino, moram Tonho, a mãe Dona Maria, e a irmã Dorinha. A casa, a mesma onde os filhos nasceram e cresceram, é a que viu Jovelino largar o filho aos dois anos de idade e a filha com seis meses de nascida. Sem motivo ou explicação dada à mulher, a casa não mais o viu. E assim cresceram os irmãos, entre nós e apegos, entre afagos e afetos, correntes e desesperos, espinhos e lágrimas, entre os rios que correm nas veias de Tonho.” (p. 14)

Uma história contada por uma narradora que vai envolvendo cada leitor pelo interesse e pela solidariedade, sentimento tão faltoso nos dias atuais, que nos faz abraçar a vida e o drama de Tonho e sua família.

Mas, como todo sertão é travessia, como bem nos ensinou Guimarães Rosa, o ser de Tonho também precisa atravessar as dores, os vazios, a solidão, a violência do olhar do outro, a falta de afeto de um mundo seco de empatias e tantos outros espinhos espalhados pela paisagem e pelas línguas ferinas, para depois esperançar por uma nova vida. Clara é amor. E o amor é também uma porta de salvação para si mesmo e para o outro.   

Não quero revelar demais as riquezas da odisseia de Tonho pelo sertão de si mesmo. Digo apenas que foi encantador pegar também meu cavalo de barro imaginário e cavalgar com o “filho de Maria” pelas veredas tão sombrias e claras, tão tristes e alegres, tão solitárias e solidárias que somente a literatura pode nos levar para conhecer nossa alma através dessas almas quase tão reais. Tatiana Costa Valverde entrega aos seus leitores e leitoras uma história de grande força existencial, de lirismo, de ternura, de valentia e conquista. Afinal de contas, “viver é muito perigoso”, num é Riobaldo?

E Tonho, assim como tantos personagens da ficção e da realidade, sabe que é preciso renascer de corpo e alma para continuar no sertão e seguir os passos da leveza que o amor e a amizade podem sempre nos ofertar.

“Depois de tanto tempo, Tonho seguiu os passos da leveza. Por instantes esqueceu-se do vazio que inundava a alma. Solidão. Angústia. Tinha um outro sertão além do que estava imerso. E era sertão leve. Com cheiro de alfazema. Claro. Nítido. Límpido. Ingênuo. Seria Clara, talvez, clareando as ideias e os espinhos.” (p. 77)

 

Tatiana Costa Valverde. Tonho. Editora Mondrongo, 2018. Prefácio de Aleilton Fonseca.

 

Cleberton Santos

Feira de Santana, 19 de outubro de 2021.






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