terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Cidade da Cultura: tempos de insensibilidade

Cidade da Cultura: tempos de insensibilidade

Adriano Eysen*

Em tempos de insensibilidade, de incentivo ao crescimento do mercado e do consumo, nos perguntamos em que instante cabe lançarmos mãos das nossas armaduras e dos nossos falsos moralismos com intuito de compartilharmos a música, a poesia, o teatro e as artes plásticas. O que falta, a um número significante de pessoas, é perceber que se instaurou epidemicamente uma cegueira humana capaz de colocar o homem em estado de contínua violência, pois se vive na era da indelicadeza, em que os interesses econômicos, as bolsas de valores, a disputa pelo poder e o individualismo nos furtam o buquê da sensibilidade.

Indico aos mais curiosos a leitura do romance Ensaio sobre a Cegueira, do escritor português José Saramago, ou o filme de título homônimo, recém lançado, aos que não se predispõem a ler as delicadas páginas de um livro. Afinal, tenta-se agradar a gregos e troianos!! Lição que acabo de aprender com a retórica e performance do senhor Asa Filho durante o projeto Travessia Poética, coordenado por mim e pelo poeta e professor Cleberton Santos, num espaço que até pouco tempo atrás parecia transbordar arte, bom gosto estético, irreverência, no qual nos era ofertado o direito de exercitar a lucidez, a reflexão, o senso crítico e, sobretudo, de compartilhar a diversidade cultural de Feira de Santana e cidades circunvizinhas. Mas, como nos entregar ao regozijo, por exemplo, da boa música e da poesia se ainda há pessoas dotadas de profunda insensatez e insensibilidade? Como levar arte para um espaço cultural no qual se exercita a prática da censura? Leiamos, sim, Saramago; recitemos Gregório de Matos (o “Boca do Inferno”), Marquês de Sade, Castro Alves, Carlos Drummond de Andrade, Patativa do Assaré. Evoquemos os poetas de todo o mundo, porque a boa literatura é capaz de nos elucidar os graus de violência que se estabelecem no cotidiano humano.

É preciso repensar os valores arcaicos e tantas vezes medíocres que assolam as mentalidades de alguns artistas numa terra que deve ter a hombridade de trazer em sua história nomes a exemplo dos poetas Aloísio Resende, Eurico Alves, Godofredo Filho, Antônio Brasileiro, Roberval Pereyr e Washington Queiroz; do ilustre educador Edivaldo Boaventura, do artista plástico e escritor Juracy Dórea e do relevante cordelista, bacharel em Direito, jornalista e pesquisador Franklin de Cerqueira Machado, último convidado do nosso projeto e indelicadamente censurado.

Não façamos o que propôs o pensamento estético de Platão (século IV a.C.), na sua obra clássica a República, quando dela expulsou os poetas (artistas) capazes de seduzir a humanidade e não de reproduzir falsos valores éticos e morais, conforme nos expõe a história oficial da civilitas morum, prática pedagógica intensificada no século XVI. Nos elevemos e façamos das artes um caminho de transformação, de sensibilização crítica, de criatividade individual e coletiva capazes de (re)criar o mundo e nos apresentar novos sentidos.

Desse modo, por que há uma delicadeza energúmena de se curvar ao mercado e aos “bons costumes” que regem as velhas oligarquias dos currais de Feira de Santana? A palavra cultura, que vem do termo latino colere (cultivar), durante longos séculos, perpassando pelos gregos, romanos e adentrando na modernidade, serviu às classes dominantes como forma de controlar e manter sobre sua tutela uma população coagida, cujo direito de informação foi-lhe roubada.
“Sejamos urgentemente delicados”, dizia Vinicius de Morais. O poeta que, ao cultivar a delicadeza e a poeticidade com seus leitores, amigos e mulheres, já nos alertava para os tempos de insensibilidade. Estamos fartos de tamanha violência que aparece de todos os lados. Ela está nos programas de televisão, nos bairros, em nossas casas, nas escolas, nas filas dos bancos e supermercados, nos espaços culturais, nos locais de trabalho, enfim, o tempo todo avançam sobre nossas jugulares. E essa cena fatigante consome, tormenta e adoece psíquica e somaticamente o ser humano.

O que nos resta? Aonde ir à noite em Feira de Santana afim de ouvir poetas, músicos, de conversar com os amigos, de expor nossos sonhos e idéias, de cultivar a sensibilidade e a nobreza d’alma? Na distinta Cidade da Cultura? Lá, também já não se pode contemplar a arte, senti-la em alto nível, enamorar-se por uma formosa mulher ouvindo em bom tom a composição de uma letra, de alguns versos ou de um belo arranjo musical. Afinal, nos tolheram o direito de ouvir, de ver sob a maestria do silêncio o que para muitos não tem sentido nenhum.

É tempo de indelicadeza, de cegueira, de anomalia! Só lamentamos que estas enfermidades chegaram às pressas num espaço em que acreditávamos ser o turíbulo das artes capaz de incensar nossos espíritos com intuito de elevá-los à vida. Em que lugar iremos nos refestelar na velha e nova Princesa do Sertão? Ainda bem que há artistas que guardam em suas algibeiras a autenticidade da sua criação e a esperança de uma civilização iluminada.

*Adriano Eysen é poeta, crítico literário e professor da UNEB.

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