quarta-feira, 31 de julho de 2013

Fortuna crítica de "Cantares de Roda"

POESIA E OFERTA
Sandro Ornellas
Poeta e professor da UFBA

“E para que poetas em tempo de penúria?”, pergunta Friedrich Hoelderlin na sétima de suas odes, intituladas Pão e vinho, na antessala da modernidade, a mesma que valorizará excessivamente a técnica e a tecnologia, o dinheiro e o valor de troca dos bens, financeiros e simbólicos, fazendo comércio de toda experiência acumulada de vida e mudando-a em mera sensação, imediata e privada. Se o poeta nesse cenário foi catapultado para a margem – por produzir um bem tão pouco ou nada mensurável, tão pouco ou nada afeito à lógica financeira e comercial, tão pouco ou nada semelhante à lógica da troca sócio-econômica – digamos que é aí justamente que está a sua força: a intempestividade e o deslocamento permanentes. Em uma época como a nossa, tão imersa na novidade jornalística que transforma tudo em informação, tão voltada para uma falsa tecnofelicidade, para o medusamento publicitário, a poesia – exatamente por não possuir qualquer valor de troca no mercado de bens culturais – é a novidade que permanece sempre novidade. Sua contemporaneidade está precisamente na sua extemporaneidade. Enquanto todos vão, a poesia e o poeta já voltaram, renovados. É aí que está o traço mais característico deste novo livro de poemas de Cleberton Santos – Cantares de roda – e o que o justifica.
“Não quero mais cantar / para homens feitos de solidão”, afirma sem meias palavras Cleberton, no início de “Anúncio”. E ouso, agora eu, afirmar que esse anúncio é cumprido quase que à risca ao longo de todo este seu novo livro. A sua ideia é muito propriamente essa: dar as mãos aos leitores e propor uma cantiga, uma dança e uma roda, uma alegria compartilhada. Compartilhada. Ao rejeitar “homens feitos de solidão”, Cleberton rejeita também a percepção comum da solidão do poeta, abandonado pelo leitor moderno, como também rejeita a solidão do leitor, esquecido pelo poeta moderno. Com inteligência e sensibilidade, o efeito buscado e alcançado ao longo do discurso deste livro é o da oferta de experiências comuns, cabendo ao poeta sua razão mais fundamental: fixar essas experiências na memória de todos, através da palavra do poema. E Cleberton sabe disso, como mostra em “A razão do poeta”: “Não cantar / ficar para semente / eis a raiz do poema. // Não morrer / ficar na escansão do presente / eis a razão do poeta”.
São vários os caminhos que Cleberton usa para estender a mão ao leitor e iniciar os seus cantares, mas o principal talvez seja o de buscar ser audível e inteligível. Qualidades que a poesia contemporânea volta a exercitar desde as últimas décadas e que em Cleberton se destacam com habilidade: “Meu canto de vida, / Brasileiros, ouvi: / Sou filho do samba, / No samba cresci; / Brasileiros, descendo / Do grande rei Zumbi” (“Filho do samba”). Sua técnica é intensificada para se ocultar, em proveito da roda, como uma espécie de dádiva, de dom que o poeta oferece à sua comunidade de leitores, a exemplo do poema que abre o discurso do livro, como um presente, “Cantares de amigo”: “Vamos cantar esta tarde sem pejo / de sermos somente sementes de alegria / de sermos sementes somente renascidas / (...)”. O “nós” do sujeito desfazendo os “nós” do texto para de mãos dadas drummondianamente semearem esperança, “razão do poeta”.
Mas se a cantiga é extemporânea por ser ancestral, esse arcaísmo (de arché: origem) do seu discurso é também cada vez mais contemporâneo no modo como Cleberton naturaliza a sua técnica poética: não há nos seus poemas fogos de artifício sintáticos, explosões imagéticas ou preciosismos lexicais, há a tradição dos ritmos e das formas temáticas da poesia, há inteligentes (não mumificados) usos de redondilhas e anáforas, assim como nas referências ao universo negro-popular em “Samba de roda”, “Carnaval”, “Roda”, “Ciranda”, “Menestrel”, dentre outros, assim como ao erotismo amoroso de “Canção da amiga” e “Luz da paixão”. Neste, o chiaroscuro dá a ambiência erótica conjugando-se ao cavalgamento rítmico entre os versos: “Amanhecer em teus braços, / pleno do gozo de uma noite / escura, sentir meu corpo / claro sempre à tua procura”. Há também outras imagens variadas, e francamente legíveis no seu sentido, imagens alegóricas de imaginários comuns, como em “Barco”, ou imagens mais pessoais, como na série final “Fuga da criação”.
Texto legível, técnica inteligível, sensibilidade temática e experiência cultural: é o que se vê e se lê neste terceiro livro de Cleberton Santos, é o que oferece o poeta aos seus leitores, sua dádiva, seu dom em forma de canto e poema. Cleberton, portanto, nos dá o que não se resume ao poema, mas nele encontra sua expressão mais concentrada: poesia. Que o leitor abra este livro como uma espécie de gesto especial, não esperando soluções mágicas para a vida e seus impasses, mas com a certeza de encontrar poemas prontos para fazer o que lhes cabe: cantar esperanças, dores, origens e amores que todos conhecemos e com os quais sonhamos, mesmo que não os conquistemos:
Atirei
Sonhos na amada
Mas meus sonhos foram só meus
Pois a amada não gosta de sonhos
E só sabe dizer adeus (“Roda do desamor”).

Salvador, junho de 2011.
Texto publicado no livro “Cantares de Roda”.

Um comentário:

Unknown disse...

Muito boa essa observação. O livro é de perfeita qualidade e as poesias remetem a quem ler um achado de bem estar fazendo viajar através das próprias memórias.
CANTARES DE RODA