quinta-feira, 22 de novembro de 2007

ANDRÉ SEFFRIN

ALGUMA POESIA BRASILEIRA HOJE

André Seffrin
Rio de Janeiro

Grande parte dos nossos poetas mais importantes não publica por editoras conhecidas e costuma passar ao largo dos benefícios (?!) da mídia e do meio acadêmico (este, sempre preso a ícones famosos e irremovíveis). Para a mídia, a imagem evanescente dos fantasmas (a exemplo do volátil JT Leroy) conta no cenário bem mais que um importante poeta de província, desses que não aparecem na televisão nem escrevem sobre os temas da moda. Esta mentalidade anêmica é hoje em parte debelada por alguns sítios (internet) tais como as revistas Cronópios e A máquina do mundo, e o Jornal de Poesia. Ou em livros, como nos dois alentados volumes, com cerca de mil páginas, Dimensões temporais na poesia & outros ensaios (Imago), nos quais César Leal reuniu diversos textos que escreveu sobre poesia brasileira e estrangeira, contemplando igualmente outros ramos do conhecimento (artes plásticas, crítica literária etc.). Em suas interpretações da poesia brasileira, ao longo dos anos ele contribuiu enormemente para a divulgação da obra de poetas ainda pouco estudados como Foed Castro Chamma, Soares Feitosa e Montez Magno. Seu livro é, nesse sentido, um verdadeiro oásis no deserto das relações entre poetas e público.
Na “quarta parte” do segundo volume, César Leal realiza pequena antologia de seus próprios poemas, recentes e antigos. Neles, como nos seus títulos conhecidos (Constelações, Tambor cósmico, Tempo e vida na terra etc.), ele ultrapassa os horizontes terrestres em metafísica que funde mitologia e ciência, figuras arquetípicas e metáforas luminosas, vasto universo feito de “Letras. Formas. Números! / Sol. Pássaros! Rosas! / Arcos, flechas, naves, / Vento, línguas, rodas!” Para além do notável teórico do fenômeno poético e ensaísta dos mais íntegros do nosso pensamento crítico, revela-se poeta protéico de assuntos inexplorados e anticonvencionais. O que se espera de todo grande poeta.
Jorge Tufic é outro exemplo de poeta que nunca usufruiu das benesses da mídia. Em entrevista ao escritor Nilto Maciel (revista Literatura, n. 29, maio/ago. 2005), ele afirmou que a “vocação literária sobrepõe-se ao fascínio da glória, seja ela fácil, por meios duvidosos, seja pela dificuldade em vencer as barreiras da incultura, livresca ou virtual. No meu caso particular, ainda não pude concluir nada acerca de minha persistência em vestir de livro os meus pobres escritos, cujo sucesso fica por conta dos amigos que tenho em Manaus, Fortaleza, e no Acre, sem mencionar as dezenas de pessoas a quem remeto os volumes que assino. O ato de escrever, e de editar, já nos serve de estímulo e consolo.” Suas publicações ficam restritas à província, geralmente em plaquetes que faz circular entre amigos: O sétimo dia (Edições Livro Técnico). Mas são cinqüenta anos de literatura e 43 livros publicados, entre poesia, ficção, ensaio e memórias, obra importantíssima que não devemos perder de vista.
A primeira seção de O sétimo dia reúne sonetos de alta musicalidade numa viagem interior de índole camoniana. “Soneto para Izabel” e “Périplo” estão na clave do que ele mesmo define como fusão do “mármore com a brisa”, como no “Soneto para José Chagas”, no qual flui lirismo de primeira água. Claro, nenhuma conotação parnasiana nesse “mármore”, uma vez que se trata de um pós-simbolista que assimilou muito bem as conquistas do Modernismo. Sua poesia nasce em anotações aparentemente aleatórias, sempre no sentido de fixar, entre sons e cores, imagens novas na velha paisagem do mundo. Assim: “Não sei dizer passarinho / sem dizer passarinhos, / tal como ensinava / a senhora de meus dias. / Ela dizia de um modo / que se via e se ouvia / o ser e o canto / a pluma e o vento; / e, por detrás de tudo, / o canto do encanto / tanto do pássaro / como dos passarinhos. / A´sso-fir, em árabe / são pássaros de pássaro / e pássaro de pássaros.” (“O nome dos sons”)
A rosa anfractuosa (Thesaurus), livro de Fernando Mendes Vianna acintosamente ignorado por quase todos os suplementos literários do país, é o retorno de um grande poeta depois de longa hibernação. Sua poesia metafísica e filosófica exige leitor preparado à sombra da estante, pois seus irmãos atendem pelo nome de Camões e de Pessoa (em especial Álvaro de Campos, pedra de toque), de Cruz e Sousa e de Jorge de Lima. Ora, é sabido que quase todos os poetas da geração de 1950 (Foed Castro Chamma, Hilda Hilst, Walmir Ayala, Mário Faustino, entre outros), criaram magnetizados pela cosmogonia de Invenção de Orfeu e, em determinados momentos, pela concretude verbal pós-simbolista de Cecília Meireles. Foi assim também com Fernando Mendes Vianna. No soneto, ele configura o que antigamente era comum chamar-se de a sua “mundividência”: “Na escuridão claríssima / sou um boi sob o plenilúnio. / A lua anterior era um alfanje / ou a metade de uma guitarra // ceifada no jardim da solidão. / Agora a lua é um mugido / igual a mim, igual à minha / claridade, agonia calma. // Mujo. Sou um boi e mujo / o anúncio de repartir / em viagem sem rumo, viajar // na alma, sem mapa e sem mar. / Boi tornado súbito navio, / e baba vira espuma. E tudo muda.” (“Plenilúnio”)
Poeta bem menos cerebral e filosófico que Fernando Mendes Vianna, mas não menos intenso e habilidoso, Carlos Newton Júnior, em Poeta em Londres (Bagaço), mantém suas linhas de força próximas (apesar do lirismo algo bandeiriano) da dicção de João Cabral de Melo Neto e do cordel nordestino (as heranças ibéricas). Poeta de qualidades incomuns, também ficcionista e ensaísta, ele se inscreve na tradição com a simplicidade e a clareza de um clássico. Ritmicamente complexa, sua poesia ainda é marcada por um contraponto entre o popular e o erudito. Assim, no mesmo passo que explora a “estrofe sonora dos repentes”, realiza poemas em homenagem a Rimbaud (“a vida é breve, breve é o poema / e todo o seu mistério, breve ainda / o som que se articula junto às rimas / e o valor ilusório dessas gemas // em que puseste as mãos de ser maldito”) e a Eliot (“Na esquina dos poetas”, que sem favor algum está entre os mais belos poemas brasileiros do nosso tempo), à pintura de Canalleto e a uma alegoria de Bronzino, imagem que o remete a outras imagens, azul que o remete a outros azuis, ou seja, ao soneto famoso de Carlos Pena Filho.
Ao contrário, a característica primordial da poesia de Mariana Ianelli é o lirismo diáfano – Fazer silêncio (Iluminuras). Em sua poesia predominam atmosferas enevoadas, imagens delicadas e fugazes e um ânimo de celebração (“Ser selvagem”). É poeta intimamente ligada aos temas religiosos e aos climas sonambúlicos da natureza humana. “Sétimo dia”, “Sophia”, “Fazer silêncio”, “Fênix” e “O outro lado” são poemas definidores de sua personalidade poética e estão entre os melhores do livro. Em momentos menos felizes, sua matéria se esgarça ao ponto de tocar o prosaico (ver o poema quase narrativo “Os desaparecidos”). No conjunto, é uma legítima herdeira do simbolismo pré e pós-modernista – no sentido de que poderia ter sido revelada, sem causar espanto, ao lado dos muitos poetas compendiados por Andrade Muricy no segundo volume de Panorama do movimento simbolista brasileiro. Sua família espiritual, portanto, é a dos integrantes do grupo da revista Festa, ao qual pertenceu Tasso da Silveira, cantor dos instantes fluidos e das vagas sombras fugidias.
Márcio Catunda, em Sintaxe do tempo (Imprece), fala outra língua e habita outro universo. Pode e deve ser lido na vertente política de Moacyr Félix e José Alcides Pinto que, não por acaso, assina o texto de apresentação. Alcides Pinto o irmana a Lorca e César Vallejo, entre outros “defensores dos espoliados e excluídos”. Seu ânimo político é catalisado pela densidade lírica, e em “Pragmatismo e tânatos” configura-se a sua arte poética: para Márcio Catunda, ao fim de tudo cada poeta terá “apenas o que deixou por escrito”. Assim como Luís Pimentel, que em O calcanhar da memória (Bertrand Brasil) igualmente configura sua arte poética em poemas como “Traçado” e “À toa”, ao sentir que poesia é “mão de obra, / um fazer e refazer-se / eternamente”, e ao encarar essa lida num paralelo com a da aranha que “vai vivendo do que tece”. Desse ângulo, Catunda e Pimentel escrevem poesia comprometida com o seu tempo e acessível ao leitor comum.
Entre tantos nomes e tendências importantes, devemos ainda registrar três estréias. Henrique Marques Samyn com Poemário do desterro (Fábrica de Livros) circula em amoroso convívio por ruas, seres e carnavais do Rio de Janeiro. É um poeta da cidade do Rio, como o foi outrora Mário Pederneiras. E não à toa encontra em João do Rio o motivo para um de seus melhores poemas, “Dentro da noite”. Às vezes lhe falta espontaneidade (talvez caminhe demasiadamente preso à métrica e à tradição), no entanto não anda distante do frêmito da vida. Em Elisa Andrade Buzzo, Se lá no sol (7Letras), o eu lírico se mostra limpo de adereços, num auto-policiamento às vezes excessivo e em jogos verbais um tanto insólitos, como no poema que dá título à coletânea. Vale destacar a homenagem a Chaplin, com seus ecos drummondianos. Já Cleberton Santos, em Lucidez silenciosa (EPP Publicações e Publicidade), valoriza palavras raras, sonoras e requintadas, mais no sentido do adorno que da estrutura. “Composição para flauta” dá a medida de seu potencial lírico: “Faço versos com retalhos de vida / fios de cabelos que apascento nos dedos”.


(Jornal Gazeta Mercantil, caderno Fim de Semana, 4 e 5 de março 2006)

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