domingo, 23 de abril de 2017

Poética na incorporação: livro de Igor Fagundes


ODISSEIA DA LINGUAGEM 

Poeta, ensaísta, crítico literário, ator e professor de Filosofia, Estética e Dança no Departamento de Arte Corporal da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Igor Fagundes digere as bases de formação do pensamento ocidental e oferece em seu oitavo livro (o quarto de ensaio), Poética na incorporação, uma odisseia da linguagem. Seduzindo-se pelo canto das sereias e das musas, restitui-se como espaço privilegiado do exercício do humano, da experimentação e da resistência. Para tanto, evoca as gestualidades vocais de Maria Bethânia e a poesia escrita de José Inácio Vieira de Melo, deitando-as na encruzilhada de Exu, orixá mensageiro das travessias, e assim promove a desconstrução de estereótipos promotores de discriminação e preconceito.
Fruto de tese de doutorado em Poética pela UFRJ, o livro revela um escritor avesso ao lugar-comum a que o conceito oswaldiano de antropofagia acabou se reduzindo, e que faz da escrita, com seu formato ensaístico, um libelo ao pensamento. Em Igor Fagundes, a escrita pensa: desdobra-se para dentro e para fora de si, investigando-se. Só por isso já merece leitura e atenção. Mas vai além. Cruza mitos africanos, bíblicos e gregos para remexer nossa ontologia cultural, problematizando, por exemplo, recentes ideias de autoficção ou escritas de si. E também restaura a questão sobre o que é ser brasileiro e sobre o que significa pensar e escrever num Brasil “expatriado”, “ainda e sempre na promessa de um descobrimento”. País que “há de ser o mistério de cada voz no silêncio e pelo silêncio transatlântico de todo lugar”.
Em suas especificidades e “dentro de um só mocó”, Exu, Cristo e Hermes incorporam no palco e terreiro deste Ulisses brasileiro e pirata que Igor Fagundes se torna, colocando “Ítaca bem no meio da gira” e atravessando o mar da sofia. Mar que também é sertão (pois, mencionando Guimarães Rosa, “o sertão está em toda parte, é dentro da gente”). Fagundes leva o sertão para dentro do texto, “sempre na volta adiável”, com eternos retornos, torneios da linguagem. Daí que testa o uso das palavras, rascunha e dobra os sentidos ao escrever, deixando sempre o rastro da escrita, da incerteza.
Se a poesia de José Inácio tem como referência os cordelistas e o aboio; se a voz de (sua musa) Maria Bethânia — “cantora encruzilhada” — guarda o canto das sereias, Igor Fagundes imprime em seu texto a marca do popular, do artesanal, do mítico. E o faz sintonizado, ainda que não cite, com um dos mais enigmáticos aforismos de Oswald de Andrade: “Só podemos atender ao mundo orecular”. Amalgamando “auricular” (de ouvido) e “oracular” (de oráculo), investe no sentido da audição, na escuta como acesso ao conhecimento, descarregando o divino na histórica objetivação capitalista.
A demanda pela voz atravessa todo o livro e é sua potência. Para além do registro escritural, a voz poética desconstrói verdades e quebra hábitos de leitura. O projeto ocidental de emudecimento do poético e, por sua vez, de ensurdecimento do ouvinte-leitor é radicalmente atacado. Entre silêncios e vazios, o leitor é chamado a tomar posição e a pensar com o corpo todo sobre o já dado, o já estabelecido na cultura dos conceitos, no fetiche da ciência que despreza as religiões: “no arcaico, sábio é o poeta, o bardo, o cantor, o incorporado”. Tomado “pelo princípio enquanto princípio, pelo milagre do agora abissal”, Igor Fagundes emula Maria Bethânia e José Inácio direcionando o leitor para um grau zero da escrita, para uma fronteira onde o escrito por si só não basta. Considerando que a musa é a fonte de uma mensagem enviada apenas ao poeta e a sereia, a portadora do canto audível aos ouvidos humanos, em Poética na incorporação a linguagem é musa e a escrita é sereia que seduz e engendra o desconforto do leitor.
Labiríntico e distante das simplificações dos manuais que criam dicotomias preguiçosas para apressados, o livro orienta antigo e moderno, tradição e traição, a fim de sustentar a hesitação geradora do pensar. Na invenção do humano, cantando o ciclo da origem, do ser se dando na linguagem, as disputas pelas heranças patriarcais são substituídas pela generosidade erótica dos contatos. Em estado de poesia, vendo o mundo “pelos olhos da esfinge”, sendo o enigma, não o decifrador, Igor Fagundes reafirma a literatura como saber: da linguagem e de um ser humano retirante, itinerante, nômade.

Resenha publicada no Jornal Rascunho

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