quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

ALANA FREITAS EL FAHL: uma crônica inédita

 

                                                                  Aproveita

 

                                                                                  “A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros

Vinha da boca do povo na língua errada do povo

Língua certa do povo

Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil.”

 

Manuel Bandeira

 

 

A linguagem e seus códigos infinitos e misteriosos sempre me impressionaram desde criança. Pensava muito sobre o nome das coisas: Por que mesa é mesa? Por que bolo é bolo? Por que azul não é rosa? Quem inventou isso um dia? Com o passar do tempo esses pensamentos só se adensaram. Quando descobri que existiam outras línguas que não só a nossa a curiosidade só aumentou. Lembram-se das brincadeiras infames “fale pescoço em francês”? Que absurdo um palavrão!

Aliás, palavrão na infância é um capítulo a parte da nossa língua. Depois da primeira infância com sua escatologia peculiar, que me abstenho de aqui repetir, avançamos para outra esfera. Éramos três meninas em casa com um pai que xingava muito  e uma mãe que nos proibia de dizer nome feio. Entre nós três, o desaforo preferido eram os nomes de cobras, tão suaves e femininos: Cascavel, Surucucu, Caninana, Naja, Sucuri. Mas quando o pau quebrava mesmo, saia o inominável “Sai da frente Espelho sem luz” que era uma ofensa gravíssima para o desespero de nossa mãe.

Mais tarde descobri e me apaixonei perdidamente pela etimologia, a possibilidade de descobrir a origem das palavras é mesmo fascinante. Sou apaixonada por prefixos e sufixos e isso me salvou muitas vezes na compreensão de alguns termos. Sobretudo, os resultados de exames e termos técnicos de várias áreas que mais se parecem com um código secreto e indecifrável. Adoro o capítulo da gramática que trata do processo de formação das palavras e aquela lista de pedacinhos gregos e latinos que se casam e dão sentidos incríveis à língua e ainda se juntaram no Português brasileiro com termos africanos e indígenas, nossa geleia geral.  Com os dicionários então tenho um caso de amor, não me canso de folheá-los aleatoriamente e descobrir uma palavra nova, ou verificar aquela quinta acepção de um termo que é o que se encaixa naquilo que a gente leu, diferentemente da primeira, mais fácil e comum.

Mas na verdade nenhum manual dá conta da dinâmica da linguagem. Ela é viva e se realiza na língua do povo, “na língua gostosa do povo”, na sua semântica movente, que faz bárbaro, sinistro e “da porra” virarem elogios. Aliás esse último é de uma polissemia incontornável e se encaixa em várias classes gramaticais que vão do substantivo à interjeição. Dentre um dos seus usos que mais me impressionam está a expressão: “Boa porra”! Ela desestabiliza qualquer conversa. Você diz: Hoje encontrei fulano! Seu amigo responde com aquela entonação de desprezo: - Boa porra!  Não precisa dizer mais nada, para ele esse alguém é um ser desprezível E sem salvação. Acontece também quando você quer enaltecer algum feito: Fulaninho se formou, foi para Europa, casou... E alguém devolve de lá: Boa porra! Fim de papo, não há mais como continuar esse diálogo.

Agora esse “bolodoro”, esse “trololó”, esse “cerca Lourenço” todo é porque eu quero falar de outra expressão, que na verdade é uma teoria:  Teoria do Aproveita. Uma das mais complexas que existem e tenho certeza que todos a utilizam de alguma forma ou já foram vítimas de sua sofisticada teia. Ela faz com que você acredite que fazer um grande favor para o outro é muito bom para você. Na verdade é a teoria do se aproveita. Vejamos algumas de suas aplicações:

Quarto do casal à noite, um levanta para ir ao banheiro ou cozinha, o cônjuge deitado (substantivo sobrecomum de propósito, pode ser um dos dois), que parecia estar à espera daquele momento, imediatamente dá o bote: --Aproveita que você levantou e traz um chá para mim. Aproveita e traz um pedaço de bolo, traz duas laranjas, um prato e uma faca e vê se a luz da garagem ficou acesa... Saia logo, a lista pode aumentar...

Você diz que vai a São Paulo alguém logo se pronuncia: - Aproveita que tu vai, tem uma loja na Vinte e Cinco de Março, facílima de achar, que tem um  creme de cabelo ótimo, você vai adorar, traz um para mim e  a gente acerta. E lá vai você viajar pensando no maldito creme e se sentido culpada de dizer não para um favorzinho tão simples. Se a viagem for internacional então, pule fora, se esconda por um tempo, não anuncie, vai rolar listas, marcas, lojas, dicas, tudo baseado na Teoria do Aproveita.

Eu tenho uma tia, especialista nessa teoria, e como ela conhecia gente nos quatro cantos do Brasil era um perigo falar na frente dela que você ia em tal lugar: Ah, você vai na Paraíba? Vai levar um requeijão para minha comadre Neuza e ainda sugeria que a gente visitasse amigas íntimas que só ela conhecia em nome dela. E lá ia a vítima com um bocapiu a mais na bagagem.

As situações são muitas e se multiplicam, você vai a uma consulta médica e alguém pede para você fazer uma pergunta sobre o problema dele. Vai ao Supermercado Baratão? Aproveita e traz um shampoo anti-caspa para mim que só tem lá. Vai à farmácia, ao menos um band aid vão te pedir. Essa teoria é uma boa porra... Agora corra mesmo se alguém começar a conversa com: Eu nunca te pedi nada! Corra porque é barril, roubada, bucha, saia-justa, roleta, esparro, boca de...

(Crônica do livro inédito)


A escritora e professora Alana Freitas El Fahl

Alana Freitas El Fahl, nascida e criada em Feira de Santana. Professora Titular de Literatura Portuguesa e Brasileira da Universidade Estadual de Feira de Santana. Autora dos livros “Singularidades Narrativas: Uma leitura dos contos de Eça de Queirós” e do livro de crônicas “Nós que apagamos a lua”, criadora do blog “Entretelas” no qual analisa novelas, séries e filmes à luz da Teoria Literária. @entretelasblog


Livro publicado em 2018.
 


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