sexta-feira, 26 de setembro de 2008

A VIDA E OS SONHOS NOS MUROS.

A Vida e o Sonho nos Muros

Cyro de Mattos*

Ultrapassada a fase criativa sob o domínio da inspiração e transpiração, um dia o autor imagina que o primeiro livro está pronto para ser editado. Vai ser útil ao outro na leitura do mundo. Ainda não sabe como é complicado publicar um livro por editor no circuito nacional, principalmente quando se trata de poesia. Com o mineiro Ney Mourão não foi diferente.
Há vinte anos, o poeta de “Notas Dispersas pelos Muros” (1) vinha batalhando para a publicação de seu primeiro livro. Chegou a ter uma idéia desesperadora nesse desejo de vê-lo finalmente editado. Começou a grafitar poemas nos muros da cidade. Assinava-se “poeta à procura de editor.” Ante o espanto de alguns e indiferença de muitos, grafitou cerca de 200 poemas. Andou quilômetros, em três anos, a pé de e de ônibus. Cobriu quase todos os bairros da cidade. Várias vezes fora preso e humilhado. Serviu como tema de redação nas escolas. Foi dado como morto. Souberam que o poeta estava vivo. Foi entrevistado e virou notícia na mídia. Mas nada de encontrar até então o editor de seu livro de estréia.
Em seu destino de ser poeta, com a marca da vida e do sonho nos muros, nunca desistia. Fazia, no itinerário das madrugadas de um homem só, que Belo Horizonte amanhecesse riscada de versos comoventes. Como estes do conhecido poemeto “Lampejo”: “Apague / a rua/ que a lua / tá linda!”. Ou ainda estes de ”Light”, de conotação surrealista: “Às vezes / de tão feliz/ ela acorda/ e sai por aí/ a t r o p e l a n d o b o r b o l e t a s.” Ou também nestes de “mercadolivrepontocom”: “Troco/ um apito de fábrica/ por um canto de pássaro”. Entre tantos poeminhas, que lembram o haicai, pela síntese construtiva, intencionalidade de grande beleza imagética, não posso deixar de citar estes versos primorosos de “Litúrgico”: “Grafite de Deus/ é arco-íris/ no horizonte1”
Em sua composição técnica e estética, como numa peça sinfônica, o conjunto dessas gritantes “Notas Dispersas pelos Muros” reúne poemas curtos na maioria das vezes. Acordes no elétrico emocional do espírito para iluminar o ar. Repercutir nas ruas e invadir as casas. Coexistem, em sua partitura musical, como elementos constituintes do discurso terno quase sem o liame entre o poeta e o leitor, leia-se ouvinte, eliminando-se o que se considera ser tão somente um formalismo desnecessário, na esperança de aumentar em suas conexões sensoriais o poder emocional que emerge em cada verso.
Mas esse mineiro criador de uma poesia nas paredes e tapumes também se sai bem quando escreve o poema com desdobramento da razão emotiva. Nesse particular, anotem como fatura exemplar do eu lírico os textos denominados “Inventário”, “Poema Musical para Roer as Unhas” e “Indo”. Neles o poeta não pretende explicar a vida, o que para muitos é inexplicável. Sob aspectos pungentes, transmite a beleza inevitável da poesia na vida, em momentos de chuva, lágrima e solidão vindas da nossa condição humana, nestes agudos ritos de passagem no sempre.
Trata-se de uma poesia de captação fácil, como talvez deva ser nos tempos atuais de velocidade. Seu discurso articula-se com rapidez para ser ouvido pelo outro mais o mundo, seduz com a enunciação sensitiva de seu conteúdo. O leitor vai encontrar nessas estridentes “Notas Dispersas pelos Muros” o andamento da beleza com motivações múltiplas no exercício da vida.
Nos tempos de hoje, em cujo ritmo uma sociedade pós-industrial impele-se pela automação, massificação e consumo, vale a pena tomar conhecimento da estréia desse poeta mineiro. Sua voz singular e plural lateja emoções. Em nervura e cumplicidade de palavras polivalentes, mostra o quanto o homem tem de grandeza em sua consciência.
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1) “Notas Dispersas pelas Paredes”, Ney Mourão, Editora Autêntica, Belo Horizonte, 2008.
2) Cyro de Mattos é baiano de Itabuna. Poeta, contista, cronista, ensaísta e autor de livros infantis Já publicou mais de trinta livros. Possui prêmios importantes e, entre eles, o Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras, o APCA, o Emílio Moura, da Academia Mineira de Letras, e o Segundo Prêmio Internacional Maestrale Marengo d’Oro, em Gênova, Itália, duas vezes. A Palimage Editores, de Viseu, Portugal, publicou dois livros seus de poesia: “Ecológico” e “Vinte Poemas do Rio”.

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