quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

IGOR ROSSONI: O CONTISTA



 O dia depois de ontem

                                                                                         

Embora não parecesse, 82 permanecera presente.

            A manhã se fizera ausência entre passos disparados em todas as direções. Estávamos há decênios de distância e a sensação percorria-nos a alma desde o baixio ao firmamento.    Estivera separado das recordações por milênios, e agora – diante de ti – tudo ressurge como sucesso incauto e irremediável.

            Como dissera: as ruas andavam apressadas; sugeriam-se fastio e relevância. As horas tolhidas nos acontecimentos perdiam-se em torvelinho e tormentas que – a custo – rompiam ponteiros e estagnações. Portanto, depois de tudo, acordei pelos quartos e algumas aflições; suores noturnos e nublidades.

            – Ontem fora assim... te ouvi a dizer entre dentes. Entanto, por suposto, puro desejo, retomei atenção ao vazio da janela. E parti. E tu falavas e sumias e se deslocavas contrariada; e voltavas. Respiravas e levavas – penso – os dedos entre os cabelos: aquelas velhas cordilheiras. Eu – aos montes – longe; mais perto do esquecimento.

            Deitei-me cedo; logo após meia xícara de leite fresco. Havia calor, ao passo de deixar a janela aberta aos barulhos de fora. Depois, a intemperança. Sim, houve um dia – no passado – a motivar o retorno de tudo, e o fastio de ontem. E hoje. Não dei por fé o momento exato em que desprendi da realidade – olhos baços – e tu falavas e desoladamente andavas e sumias, desaparecias aos olhos e, por pouco, voltavas a ocupar espaço e audições. Então, acordei entre 10 e a sensação era a de que – ao longe, talvez onde os ossos desalcançassem – falavas e andavas sem-fim; e, cabelos ao vento, desaparecias, e algum balbucio de ao-longe indo-vindo o imperceptível, e tornavas a desaparecer  – meus pensamentos –; redivivas audições. Eu, no vagar inglório. Olhos pela paisagem e aquela dor de por-dentro como a recorrer ao insucesso.

            O sol insistisse em arder. Sentei-me dele à sombra, distante da investida que preenchia de amanhecimento onde nos encontrávamos.

            A cada avanço na paisagem, a recordação cede lugar à lembrança e – pelo-mais-pelo-menos – intensifica a sensação de já ter presenciado aquilo todo em quantidade e consideração. Súbito, olho divisou – à meia distância – grupo de jovens que, sugeria, aprumavam instrumentos e tonalidades musicais. Estavam ali – à frente –; e não estavam. Depois do sucedido ainda lá, insistindo contentamento.

            Ontem, não pude divisar pela certeza. Hoje, sim: Monteverdi.  Uma duas três e sempre iniciavam do mesmo ponto. Os passeantes – corridos – pouco lhes mediam presença. Agora, o que restara de então, apenas a presente ausência de notas que insistissem em permanecer n’alma de meus olhos, interpermeados pela vidraça inda fechada; donde a lembrança e a confirmação: sim, Monteverdi, certamente. E eles – no exato – 4 no passeio de tantos a recomeçarem sempre do mesmo ponto. Sempre. Do mesmo ponto. Não mais que meia pequena dúzia de acordes à espera. À espera-de. Seria? Apenas, pacientemente, reiniciavam. Pacientes, re-iniciavam. Apenas passavam sem lhes conferir sentido ou atenção. Meus pensamentos somavam-se aos acordes e, repetidamente, sempre do mesmo ponto, realizavam um dois três poucos balbucios – Paolo – que assim o fosse.  Meus pensamentos somavam-se aos acordes e, repetidamente, sempre do mesmo ponto, realizavam mesmos trajetos e indignações: sorrisos, campos e ventos, algazarras, bandeirolas, piparotes, Magníficat e francas esperanças; inda mais: certeza e antecipadas convicções. Depois: Verdi, perturbações, desmantelos, Otelo, descrença, desconjuro e ruína.    

            Pela vidraça – no translúcido – o curso dos dias, inescrupulosamente. Aliso com o resto de unhas e dedos a vestimenta que, por ainda mais, lhe nubla a visão, e componho cordilheiras no pó, ansiosamente, pelos anos depositado. Ao canto, à esquerda, a cadeira vazia que há pouco me ocuparia espaço. Súbito, olho desviado das paisagens: sim, sim; de imagem repercutida na recordação à vivência real de tempo presente e tempestuoso:

            Bem sei a data e o local. Dezessete e quinze em ponto. Cinco de julho de um mil novecentos e oitenta e dois. Barcelona. Não-mais exitente Sarriá. A tarde parecia de bons agouros, entanto  – talvez – touros já desandassem voo em direção ao desatino e à desmesura a las cinco de la tarde. El viento se llevó los algodones...a las cinco de la tarde...cuando el sudor de nieve fue llegando...a las cinco de la tarde...lo demás era muerte y sólo muerte... a las cinco de la tarde...Ay, qué terribles cinco de la tarde. Eran las cinco em todos los relojes. Eran las cinco en sombra de la tarde. Tudo por vislumbrar e, por mais uma vez, a mesma imagem a percorrer a veracidade do infante insucesso: uma duas três, sempre reiniciando do mesmo ponto: Paolo Paolo Paolo. De sorriso e crença indubitáveis, a tarde enxurrou tempestade, gotas de sangue, aflições e desfalecimento: tudo ali, naquela tarde, ruína e frustrações prenunciadas.

            Se tivesse, teria não mais que uns tantos bons e vividos anos; à penas e catalogações. Par de livros por escrever e, desde lá, saudade de aquilo que dali sentisse carência. Até surgires, e pronto: tudo a desfalecer por vielas e atitudes recortadas, insalubres rotundas e umidades, reconsiderações e desencantos.

            Por mais que insistisse em soterrar o musgo da sensação, a tormenta prosseguia involuntária de minha ansiedade de fuga: desmoronamento. E falavas, falavas, trazendo-me à velha realidade  e – de-novo – ao desejo de entorpecimento: o que eras, era.

            As visões são sempre a recorrência: todos os anos depois dali, ao dúbio esquecimento. Entanto, às vezes – no soar de telefones e telefonemas – certo aceno breve d’espasmo breve, e promessas e esperanças não se contém e extravazam escandalosas pelas bordas do firmamento. Daí o susto, o escárnio do avesso, e a crua atenção à mera possibilidade inconclusa. Fora há muito; e fora para pior. E acabara. Vejo que de lá tudo decaíra a pó, e impregna-me irreverente a ponta dos dedos. Fora queda para além de mero esforço passageiro; portanto, diante de ti, o dia depois de ontem retém a nervura circunspecta de insucesso maior: o de todas as certezas aos frangalhos. Entanto, tudo já prenunciasse desterro e, em verdade, a perda inverossímil em tão-poucos passageiros pulsos – não mais que hora e meia, por suposto – estende-se a outros intercursos e humanas carências; afinal o que são entre-noventa minutos de intermitência? Nada; nada mudaria o curso das incertas e dos nossos mais frágeis desencontros. Que perduram, antesmente.

            E digo que sim. Entre parênteses a memória de cada instante em que a credulidade foi cedendo espaço ao incrudente desfecho; inda não esvaido de todo: a veia negligenciada – violenta – diante daquilo.

            Portanto, mesmo, nada teria a dizer. O nem querer-dizer. Nada insistisse em dizer e agora tu aqui, bem à nossa frente a despetalar de mim as mais destroçadas  sensações; e nos lembrar que – por-tão-por-sem – tudo se acabara, e não. Afinal, vivemos. E tu aqui, a cobrar-me de reviver o que já prontamente esquecido. E despertar: tudo planejado e, à hora exata – às dezessete e quinze daquela tarde depois da outra, ambas fatídicas    ruas desertas, casas recolhidas, olhos atentos e corações à altura de fôlego-à-mingua. Nesses instantes pequenos, eternidade de silêncios: apenas expectativas e pulsações. À cadeira − ali a frente − aproximaram-se outras e tantas mais; quase todos os olhos irmanados diante do almejo: na tela, devidas certezas. Até o fim.

            A música, então, era plena. Sem mais experimentos: soasse a própria melodia. Entanto, o vazio prolongado – à lentidão de meus ouvidos – entre nota e nota encompridava o silêncio alojado-estrondoso em meus pensamentos. Deixo os olhos esquecidos na paisagem. O que resta é nada além de esforço de vidraça – tecido carmesin e pó – em desalinho. A custo, apáticos, me observam; diverso dos teus – provocantes  – como as palavras em desacredito e fúria que despejas sobre meus insanos ouvidos. Se sim, sim; caso não, não. Mas, no extenso, diante de ti, calo; e – dada minha ausência – agita-se, escomungas, esconjuras o deus-o-livre e nunca mais. E o que pensarás mesmo depois de não muito tempo passado? Talvez venhas com promessa de postar penas e caligrafias, e algo a refazer pela palavra a sensação da despedida de coisa muito esperada e – praticamente – concluída, que fracassara.  E  então me furtarias a sorte do esquecimento e me trarias de volta ao convívio com as flores das pequenas angústias e pestes acumuladas. E tu ficas aí, a falar e falar diante de meus mais improváveis deslocamentos.

            Não dei-me de-conta; o tempo esvaido na esgueira da quase-ida manhã. Bem sei o trabalho de dar ordem à normalidade da casa: recolher, descartar, desimpedir, enxaguar, desatar, permanecer, debitar. Afinal, a qualquer momento, vais chegar  e, sem escrúpulos, perguntar-me pelo espelho, que me dispersa em tempo e tempo. E eu, o que a dizer depois de ontem?

            A história de papéis acumula-se à escrivaninha. Caligrafia aos poucos – sofridamente. Apenas promessa de ter corpo tecido e pronto, sem remendos e de boa temperança. Assim, uma duas três, ensaio dizer-te o que esperas ouvir. Entanto, só faço mesmo ausência e as palavras insoam para dentro e, por outra vez, emudecem diante de ti e de mim, a olharem-me com os olhos meus; inquisidoramente.

No repentino, passos dobrados. Corredores externos. Porta entre-aberta. Outros passos. O toque melodioso na fechadura que, por pouco, agride acorde musical – esperança sob sal – e, abrupto: o espelho. Não. Não me vê no-imediato. Distraio-o aos flancos. Invisto pelas tordas. Escorrego entre-lenhos; mas, por estar inda vivo – irremediável – aos poucos e receios, devolto-me da imprecisão à contratura d’encontro, dando-me a ver na imagem de minha imagem nele projetada. Olha-me fixamente os olhos. E eu sei. Nada mais a ser feito. Nada a vingar pudesse.

            Há horas, assim estive: entre mim e o que restara: ontem e hoje.

O sol incidia agora, violento, sobre o quarteto. Instrumentos os reluzia em contraste às vestes negramente veladas. Só então – olhar interdito em ti – o estorvo:  garganta e nó, em não-mais que meias-exaustas palavras.

Afinal, vivos, insistimos.

IGOR ROSSONI

 

Conto pulicado na antologia “82. Uma copa, 15 histórias.” (Organização de Mayrant Gallo). Anajé: Casarão do Verbo, 2013. 155 páginas

http://www.casaraodoverbo.com.br/livros3.html

http://www.carlosribeiroescritor.com.br/novo/livros-publicados/82-uma-copa-quinze-historias/

 


IGOR ROSSONI é arquiteto, escritor, ensaísta, Pós-Doutor em Teoria Literária. É professor do Instituto de Letras da UFBA e de Pós-Graduação no Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade do IHAC-UFBA. Publicou mais de 300 artigos em imprensa escrita, vários capítulos de livros e ensaios científicos. Livros: 
Pátio, 1981; Vértebra, 1983; Zen e a poética auto-reflexiva de Clarice Lispector, 2002; Os inocentes, 2006; Fotogramas do imaginário: Manoel de Barros, 2007; Capturas do instante, 2007; Exercício para clarineta, 2010; Coletâneas: Tardes com anões, 2011; Cenas Brasileiras: ensaios sobre literatura, 2012; Entredentes, 2012; 82 – uma copa, várias histórias, 2013; Frei Russon, 2014; Cruvianas: prosa d’encantar carneiros, 2015; Transfiguração poética do espaço e Guimarães Rosa e Manoel de Barros, 2016. Membro efetivo da Academia de Letras de Santo Amaro - BA. 

 http://oxe.insix.com.br/igor-rossoni/ 

http://blogdaalsa.blogspot.com/





 

 

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